∇∇∇Capítulo III ∇∇∇
BBL Após 7 anos, LS passou a sofrer de progressivos problemas pulmonares, renais e hepáticos que provocaram consultas frequentes e algumas internações hospitalares. A bioprótese mantinha-se suficiente, o coração funcionava normalmente. Até um determinado dia, 10 anos e 2 meses depois do implante valvular.
2015
♦Quarto pedágio bioético- LS no Pronto Socorro
Dr. PN -Bom dia LS. O que aconteceu?
LS- Doutor, estou péssimo. Não bastava todas estas doenças que aconteceram nos últimos anos e há duas noites não consigo dormir deitado, muita falta de ar.
Dr. PN -De repente?
LS- Foi doutor, ouvi um barulho dentro do meu peito e o folego ficou curto.
Dr. PN- Será que…
LS- Doutor, acho que a minha prótese cansou, ela nem me responde mais.
BBL A bioprótese rompera-se. Paradoxalmente, a melhora que o coração de LS tivera com a eficiência da prótese prejudicava a convivência com ela agora ineficiente. Uma nova prótese precisava ser convocada e com urgência. A internação hospitalar foi providenciada.
♦Quinto pedágio bioético- LS internado
Dr. PN – Nossa equipe concentrou-se no seu caso, analisou os exames, fez umas contas e a conclusão foi que o risco de uma reoperação é alto devido às outras doenças que você tem.
LS – Não vou ser operado?
Dr. PN – A equipe acha melhor não.
LS -Doutor, eu dou consentimento total para a cirurgia. Eu fiquei ótimo todos estes anos.
Dr. PN- Eu sei, mas agora é diferente.
LS – Mas eu aprendi a lição.
Dr. PN – Há muita chance de problemas sérios durante e depois da cirurgia.
LS -Doutor, eu não aguento ficar assim.
Dr. PN – Eu sei. É que a equipe está preocupada.
LS- Preocupada com o que, doutor?
Dr. PN- Com o que pode acontecer com a cirurgia.
LS- Doutor, eu estou preocupado com a minha situação agora, estou um inválido.
Dr. PN- O escore de risco é praticamente proibitivo.
LS- Doutor, proibitivo é como estou me sentindo.
Dr. PN – É verdade.
LS -Doutor, lembro-me bem que o senhor disse que se a prótese deixasse de funcionar, eu precisaria reoperar.
Dr. PN- É que apareceram algumas doenças nestes 10 anos.
LS- Doutor, eu confio no senhor, na sua equipe, me opere, eu assino qualquer papel.
Dr. PN – Gostaria de falar com algum familiar seu.
LS- Só tenho a minha filha, ela vai chegar hoje, mora fora.
Dr. PN- Eu vou conversar com a equipe novamente.
LS- Obrigado, doutor, vai dar tudo certo.
Dr. PN- Até mais, continue em repouso.
♦Sexto pedágio bioético-Reunião multiprofissional, interdisciplinar.
BBL O Dr. PN marcou uma reunião com a equipe multiprofissional e interdisciplinar para o dia seguinte. Solicitou a presença da Comissão de Bioética do hospital.
Participantes da reunião:
Dr. JN, cardiologista veterano (Dr. WL), cirurgião (Dr. CG), anestesista (Dr. AN), enfermeira (Enf), psicóloga (Psi), assistente social (Aso), médico da Comissão de Bioética (MCobi), advogado da Comissão de Bioética (ACobi), Hemodinamicista (Dr. Hd), Residentes de Medicina (Dr. RM).
Dr. JN- Trago o caso do paciente LS novamente. Precisamos tomar uma decisão. Sinto-me emocionalmente envolvido, estou num dilema que muito me aflige. É importante que todos vocês opinem. Recordando, LS é meu paciente antigo, há alguns anos vem sofrendo várias doenças crônicas que o debilitaram e agora a prótese aórtica apresentou rasgadura em dois folhetos, a situação clínica é grave, como lhes apresentei na reunião passada. A conclusão foi que o risco cirúrgico desaconselhava a reoperação. Mas quando fui dar a notícia, o paciente não aceitou, ele deseja ser reoperado. O Dr. RM lhes fará uma breve recordação sobre o caso e atualizará algumas informações.
BBL O Dr. RM expôs a situação do paciente e enfatizou o alto escore de risco para a reoperação, a conotação de risco proibitivo em função de graves problemas renais, pulmonares e hepáticos, a determinação do paciente para se submeter à operação.
Psi – Eu conversei com o paciente depois que o Dr. RM me explicou a situação. LS está plenamente esclarecido da gravidade da situação, disse-me que aprendeu muito sobre a importância da prótese na operação a que submeteu há 10 anos, acha que vai repetir o resultado que obteve e que sabe que tem que arriscar. Ficar como está é impossível para ele e confia na equipe. E que assina qualquer papel necessário, mas que não demorem para operá-lo. Mostrou-se bem determinado. Ele tem uma filha de 21 anos que chega hoje do exterior. Chegou a dizer que estaria disposto a procurar outro médico se for preciso, mas que tem certeza que o Dr. JN atenderá ao seu desejo. É pessoa religiosa e tem fé que tudo dará certo.
Aso- Trata-se de uma pessoa que vive sozinha desde que a esposa faleceu de câncer, tem um emprego estável, casa própria, a filha estuda no exterior. Tem dois irmãos, mas perdeu contato.
Dr. CG – É a primeira reoperação, não vejo nenhum problema técnico para o acesso e para a substituição da prótese. O que preocupa é o pós-operatório, com os problemas pulmonares, renais e hepáticos que ele tem e que provoca todo este escore de risco alto. Eu sei que temos uma boa estrutura de UTI, mas não sei não…
Dr. AN – Já tivemos casos semelhantes em que o paciente foi bem sucedido no Centro Cirúrgico…
DR. CG – Mas depois…
Dr. AN – … Há boa chance de conseguirmos controlar a situação do paciente durante a anestesia, mas concordo que os recursos poderão ser insuficientes para um tempo mais prolongado após toda a manipulação que deverá ser feita, drogas, circulação extracorpórea num organismo debilitado. Certamente, há doentes menos graves na fila com mais chance de benefício com a cirurgia.
Dr. RM – E se o paciente não for operado, como cuidaremos dele?
Dr. JN – Estaremos muito limitados, o que fizermos para melhorar a insuficiência cardíaca prejudicará os demais órgãos doentes.
Dr. RM – Ele é um paciente terminal? Vamos encaminhá-lo para Cuidados Paliativos?
Dr. JN – É complicado, tecnicamente ele não é um paciente terminal, vamos continuar tratando com toda a intensidade possível, mas com pouca chance de o beneficiar.
BBL O clima era de pessimismo. Um Residente cochichou para o do lado que estava se sentindo já no velório. Recebeu a resposta que um professor lhe dissera que operar por operar sem nenhuma chance não cabia mais na Medicina moderna. Temos que aprender muito, disseram quase em uníssono.
Dr. RM – Dr. JN, até que ponto um assim chamado risco proibitivo é certeza de insucesso?
Dr. JN – O escore é como uma memória dos resultados já conhecidos. A coleção de casos vai orientando sobre os dados dos pacientes que mais se associaram a insucesso, à morte transoperatória. Ele não dá certezas, mas uma orientação com fundamentação estatística que tem sido respeitada universalmente.
Dr. RM – Quer dizer que o paciente com escore menor tem prioridade?
Dr. JN – Não é bem assim, mas uma visão social não pode ser desconsiderada, embora soe mesmo utilitarista. E com pessoas, pacientes…
Dr. WL – Eu estou perplexo, não estava na outra reunião. Eu sou do tempo em que não se usava este tal de escore de risco. O cirurgião analisava o jeitão do caso junto comigo, prevenia ao paciente que poderia acontecer o pior, entre aspas, e operava, meio que imbuído de um espírito de heroísmo. Apostava na sua habilidade sustentada pelo prazer da realização técnica, dava uma chance para o paciente, uma chance real. Ficávamos com a sensação que fizéramos como juramos na formatura, apesar dos óbitos. Tenho percebido que hoje a coisa mudou. Parece que quanto mais recursos aparecem para resolver os insucessos, mais preocupação existe com o uso dos mesmos, se vale a pena tanto sofrimento, tanto esforço, tanto gasto. Muita conta, nunca gostei de matematizar o que é biológico. Semana passada, ouvi o diretor dizer que tínhamos que nos preocupar com a questão dos recursos financeiros, que eram finitos. Ele não gostou quando lhe disse que nunca lera em um Livro de Medicina que a quantidade de dinheiro era fator de risco a ser considerado. Este paciente tem que ser operado, estamos aqui para isto. Ninguém pode fechar o prognóstico. Não somos profetas nem sobre o bem e nem sobre o mal. A minha diretriz é a minha consciência. Somos apenas médicos que procuram fazer o melhor possível pelo paciente. Deixá-lo morrer em insuficiência cardíaca rapidamente progressiva é no mínimo uma desumanidade.
Dr. RM – Este paciente seria operado em outros países?
Dr. WL – Há grandes diferenças culturais. Nem sempre as diretrizes são boas conselheiras. Elas nos induzem a atuar não como convém no caso mas como uma lei internacional.
Dr. RM – O senhor faria a cirurgia, então?
Dr. WL- Melhor que não, pois sou um clínico… Mas respondendo, sim, eu indicaria a reoperação porque a morte será inevitável em curto prazo se ela não for realizada e o paciente deseja correr o risco. O médico está treinado para fazer, ele só não deve fazer quando tem opção melhor e não vejo nenhuma aqui. Aliás, no último Journal…
BBL O Dr. JN cortou a palavra do Dr. WL, sabia que o colega tocaria na inovação tecnológica percutânea e ele não queria porque não traria resultado prático. O que precisava ser resolvido era se prevaleceria o desejo do paciente ou a objetividade do escore de risco, da fragilidade do paciente e das últimas experiências. Para sua satisfação, o celular do Dr. WL tocou e ele saiu da sala. Mas a veemência das palavras permaneceu ecoando continuadamente entre as 4 paredes. Cadeados mentais foram destravados.
Dr. MCobi – Pelo que entendi, o paciente está capaz e deseja ter a chance do benefício cirúrgico, que não se pode desconsiderar, apesar do risco alto. Qualquer resultado terá justificativa ética, subentendo, claro, que os procedimentos serão corretamente realizados, e sobre isto não há o que temer. Gostaria de fazer uma pequena observação sobre o que o Dr. WL disse. É sobre a intenção. Segundo a ética da responsabilidade, deveríamos responder não apenas pela intenção, mas também pelas consequências do ato, tanto quanto possamos prevê-las…
Dr. CG – Mas não há como prever o resultado neste caso. Podemos supor.
Dr. MCobi – Exatamente, não há convicção que o sucesso é impossível, diferente de situações onde é nitidamente melhor evitar fazer alguma coisa para não prejudicar o sucesso. Aqui é necessário correr o risco para que haja alguma chance de sobrevida. Diria mesmo que pode ser prudente a intenção de correr o risco do insucesso.
Dr. RM – O senhor abordou a autonomia do paciente, mas e a autonomia do médico? Eu aprendi com um caso que tive no Ambulatório que o médico não é obrigado a fazer o que não deseja.
Dr. MCobi- Não é bem assim, esta desobrigação está relacionada com a consciência do médico em praticar algum ato moralmente injustificado, que violentaria muito o seu caráter. Não dar um atestado falso, não praticar um aborto autorizado judicialmente, não prescrever sem examinar só porque um amigo pediu o favor. E, no caso, a cirurgia está ao nosso alcance e não é um ato 100% sem propósito.
Dr. JN – Eu desejo muito fazer alguma coisa pelo LS, mas não quero ser a pessoa que precipitará o seu óbito.
Dr. CG – Se houver a decisão, eu me disponho a operar.
BBL- A atmosfera parece ter mudado após a oxigenação pró-cirurgia feita pelo experiente Dr. WL. O Dr. CG convencera-se que tinha entrado numa zona de conforto e que estava equivocado. Dane-se a estatística do Serviço. Insucesso é um tipo de evolução ética. Não fazer não seria insucesso, seria indiferença. Levava uma vantagem em relação ao Dr. JN, não tinha a mesma sobrecarga emocional sobre os ombros. Via muita chance de completar o ato operatório, sua participação não poderia ser mal avaliada.
Dr. RM – Não seria uma negligência não reoperar? Se colocamos uma prótese e ela agora está insuficiente é obrigação corrigirmos a falha.
Dr. MCobi – Na verdade, o melhor termo a usar é imprudência. A escolha entre fazer e não fazer. Você não deve arcar com a imperfeição do método. Só o fato de o caso estar aqui sendo discutido por uma equipe que além de tudo tem bom senso já, de certa forma, atesta uma prudência na resolução. A decisão poderá ser questionada, mas foi trabalhada e sentida de uma forma que se entendeu prudente. Ainda mais, quando se sabe que o paciente aceitaria a imprudência, entre aspas.
Dr. RM – Mas a decisão tem que privilegiar tanto a sobrevida como a qualidade de vida…
Dr. MCobi – Em tese, sim. Claro. Mas não se esqueça que não podemos pensar neste caso em qualidade de vida absoluta, poderá acontecer uma sobrevida com qualidade de vida pelo menos melhor do que haveria sem a reoperação. Ainda a respeito da autonomia do médico, eu desejo salientar que devemos pensar agora numa autonomia da equipe. Obviamente, cada um responde individualmente, mas poderá haver ou não consenso. E se o dissenso for do cirurgião, eu prevejo que não será pelo que ele próprio nos disse há pouco, ficaria uma situação difícil se todos decidissem apoiar a reoperação e o cirurgião se recusasse. Já acompanhei casos onde o cirurgião se recusou, onde o anestesista se recusou…
Dr. RM – E o clínico como ficou?
Dr. MCobi – Vi clínico que pediu para o cirurgião documentar no prontuário e deu alta para o paciente e vi clínico que num rompante convenceu a família sobre transferência e o paciente foi operado a 2 Km dali.
Dr. RM – Clínico corajoso…
Dr. MCobi – Ou vaidoso.
Dr. Hd – Como temos vários Residentes presentes, parece-me oportuno comentar que já existem há anos próteses especialmente desenvolvidas…
Dr. JN – Deixemos para outra…
Dr. Hd – Estamos aqui numa missão pedagógica, não abro mão do comentário. Como estava dizendo, já existem próteses especialmente desenvolvidas para serem implantadas no coração via transcateter, com ótimos resultados em pacientes com risco cirúrgico alto e proibitivo, e, mais recentemente, o método expandiu-se para novas situações clínicas e já há experiência com a técnica chamada de válvula-em-válvula. Vários artigos já foram publicados mostrando um sinal verde com o implante pelo cateterismo de uma prótese de pericárdio porcino afastando a prótese original na direção do chamado anel valvar. Entendo que o caso que está sendo apresentado preencheria os critérios.
Dr. RM – Então, há outra solução.
BBL- Este era o ponto que o Dr. JN não desejava que fosse discutido. Ele tinhas suas razões. Já tivera um caso semelhante há 45 dias. Havia se precipitado e comentado com o paciente e familiares. Por várias razões não houve a mínima possibilidade da realização. Sofrera com a situação, a pressão dos familiares, as conversas na diretoria nada amistosas. Decidira que não mais comentaria a literatura com o paciente se o método não estivesse disponível. Não era uma questão tão-somente de local, em nenhum Serviço de hemodinâmica do Brasil ele seria realizado, pelo menos que ele saiba pelo SUS. E no caso de LS, ele tinha certeza que o paciente não teria recursos próprios para procurar um determinado hospital em alguma parte do mundo que realizasse o procedimento. Ele não se sentia feliz por “esconder” do paciente a informação, mas estava fortemente apegado à ideia que traria danos desnecessários, inclusive para ele.
Dr. JN -Não. Não há outra solução. O que o Dr. Hd disse é maravilha, mas o problema é que estes procedimentos de implante de prótese valvular trans-cateter não foi autorizado no Brasil, não faz pelo SUS. Eu tive um caso semelhante ao do paciente LS, recentemente, e não conseguimos que a nova técnica pudesse ser aplicada. Foi estressante. Vou solicitar ao Dr. ACobi que faça um relato dos aspectos legais envolvidos.
Dr. ACobi – Pois não. A situação é complexa. Existe um documento público emitido pelo Ministério da Saúde que afirma não haver evidência científica suficiente para embasar a indicação da TAVI nas situações em que preencheriam critérios adotados em outros países. Médicos já contestaram, estão se movimentando com a dignidade da luta por um fim em que acreditam e já acionaram, inclusive, o Congresso Nacional em Brasília. Por enquanto, o paciente idoso não tem como se beneficiar da técnica como usuário do SUS. E a situação fica ainda mais complicada em relação ao chamado válvula-em-válvula, que se aplicaria ao caso em questão e que é relativamente recente e não foi objeto de apreciação governamental, pelo que eu tenha notícia. Pacientes têm procurado uma ordem da Justiça para o procedimento. E como vocês sabem, ordem judicial tem que ser cumprida. De vez em quando um diretor clínico corre o risco de prisão quando o hospital recebe uma ordem judicial e não providencia.
Dr. JN – Pois é, o meritíssimo juiz lê a petição, provavelmente com um relatório médico anexo orientando sobre a necessidade e, apreensivo, desejando o melhor para o paciente, tem a sua palavra transformada em ordem. Já o médico que fez o relatório, por exemplo, está limitado por um entendimento equivocado de uma comissão governamental.
Dr. MCobi – O mais forte prevalece e nem sempre ele é justo. É interessante ver a Medicina envolvida pelos 3 poderes da República. Seria mais prático que a Bioética pudesse contribuir mais efetivamente para a solução de conflitos desta magnitude, sem a indiferença e sem o mandado.
Dr. JN – Pois é, a loucura é que a Diretriz brasileira de valvopatia, que já tem 4 anos, recomenda o implante percutâneo nas situações de contraindicação ao ato cirúrgico ou quando o risco é muito alto. O médico da beira do leito fica num dilema. Mas, vamos voltar ao caso do paciente LS, uma recomendação de válvula-em-válvula nem é tratada na diretriz. Dr. MCobi, como é que o senhor nos orienta?
Dr. MCobi- A Comissão de Bioética dá apoio, mas não a decisão, evidentemente. Está claro que temos um conflito de Princípios, aliás o que é comum. Está ocorrendo a impossibilidade de o Princípio da Não Maleficência se acertar tanto com o da Beneficência, quanto o da Autonomia conforme o paciente. É difícil decidir por uma hierarquia quando a segurança biológica do paciente com risco de morte está fortemente em jogo. Quando há mais de uma opção, a tendência é hierarquizar a Não Maleficência e optar pelo método de menor risco para benefício de certa forma aceitável. Mas aqui não há opção, pois o tratamento clínico como ficou claro não tem nenhuma perspectiva de benefício. Hierarquizar o Princípio da Autonomia conforme o paciente pode ser defendido porque há alguma chance de sobrevida e de melhora da qualidade de vida, por mais que os números do escore sejam trágicos, não são verdades absolutas. Aliás, o chamado risco proibitivo tem um valor percentual complementar bem mais alto, a linha de corte é uma interpretação que leva em conta fatores médicos e não médicos. Não podemos esquecer do Princípio da Autonomia conforme o médico, se ele entende que há contra-indicação cirúrgica e faz a opção pelo tratamento clínico. Como já comentei, vejo que o Dr. CG não pretende se negar a operar, o que pelo menos da parte de quem vai de fato realizar o ato médico tende a colocar esta ressalva de lado. Não podemos esquecer do art. 31 do Código de Ética Médica vigente: É vedado ao médico desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte. Decidir ele pode decidir, mas não é um mandado de juiz. Em resumo, qualquer tomada de decisão estará firmemente fincada em areia movediça. Por isso, a que for tomada deverá ser justificada por escrito no prontuário do paciente, a fim de documentar as dificuldades e as razões da resolução. Não haverá uma certa e outra errada. Não quero perder a oportunidade para repetir o que tenho dito em muitas ocasiões, a ressalva salvo em iminente risco de morte é razão ética bastante para que o Paternalismo não se aposente por tempo de serviço, como muitos desejam.
Dr. RM – Mas este artigo 31 não vale mais para uma situação inversa a esta, quando o médico quer e o paciente não consente?
Dr. MCobi- Você tem razão, parece ser este o espírito do artigo, mas poder-se-ia dizer que, neste caso em discussão, poderíamos considerar que o médico quer o tratamento clínico e o paciente não consente. Como você vê, quando há divergência, a chance de uma crise é alta, ainda mais quando estamos falando de poucas chances e opções.
Dr. RM – Opção autorizada no sistema de saúde, pois como o Dr. Hd disse, se pudesse…
Dr. JN -Infelizmente o tempo está no fim, já tem gente abrindo a porta para a reunião seguinte, temos que decidir.
BBL De fato, o tempo da reunião se esgotava e os partícipes também. O Dr. JN estava naquela situação de alguém que vai pedir um conselho, mas vai com a sua opinião, embora oculta que deseja mesmo é compartilhar a responsabilidade. Ocorria uma peculiaridade interessante. Saber que existia a técnica da válvula-em-válvula estava criando uma angústia adicional no Dr. JN, a sensação que poderia ser feito algo mais eficiente para a situação. É terrível para o médico ético a exigência de contenção pelo pragmatismo. O caso anterior atara as suas mãos, amordaçara a sua boca, mas os movimentos contidos agitavam a sua consciência. Descarregava o quanto podia no saco de pancada da sala de ginástica. Luva de box quando desejava era usar luva de pelica. Se ainda não houvesse a inovação, o conformismo com um mais baixo limite da Medicina facilitaria a ordenação do compromisso médico com o art. 32 do Código de Ética Médica vigente: É vedado ao médico deixar de usar todos os meios disponíveis de diagnóstico e tratamento, cientificamente reconhecidos e a seu alcance, em favor do paciente. Naquele momento, o Dr. JN entendia que a literatura que conhecia dava reconhecimento científico para a técnica válvula-em-válvula, e quando predominava a sensação de que estava deixando de usar, imediatamente, o pensamento era contrabalançado, qual gangorra, pelo peso da realidade da falta de alcance. A decisão sobre a sobrevida do paciente, que desconfortava a todos, estava no final da contagem regressiva. Soaria como um veredicto.
Dr. AN – Colegas, eu sou anestesista, mas não estou anestesiado, principalmente da consciência. Entrei na reunião propenso à opinião que, infelizmente, a condição clínica do paciente nos direcionava para uma contra-indicação inconteste. A minha primeira manifestação foi com este sentimento. Porém, ouvindo atentamente a todos, mudei de opinião. A vida já foi injusta com o paciente, febre reumática, doença renal, hepática e pulmonar levando-o a uma saúde debilitada. Não desejo ser injusto com ele, também. Já fiz aqui comigo toda a estratégia que usarei prevendo as mais importantes intercorrências durante a operação para dar alguma chance ao paciente. Ele irá complicar no pós-operatório? Terá sido uma operação ineficaz, trabalhosa, onerosa, e quaisquer outros adjetivos que queiram acrescentar? Que seja. E não pensem que eu, de repente, vesti a capa do super-homem e estou achando que tenho poderes a mais. Eu estou me sentindo na pele do paciente, preferiria morrer lutando pela minha vida. Assim, voto pela operação.
BBL- O Dr. AN expressou o que todos ali tinham dentro de si. Decidiu-se pela operação. Os Residentes manifestaram o desejo de assistir à operação e combinaram que um sorteio daria o nome do privilegiado que iria acompanhar o Residente do leito do paciente, este, evidentemente, presença garantida pela proximidade ao paciente. O anestesista pensou que seria bom contar com mais um na sala. O cirurgião disse que solicitaria ao colega tão experiente quanto ele para ser o primeiro-auxiliar. Que beleza ver todos imbuídos na preocupação de oferecer o máximo da capacidade humana e técnica ao paciente para atingir o pico da chance de sucesso. E toda a demonstração de generosidade, que ia além de qualquer interesse pessoal, no âmbito do SUS.
♦Sétimo pedágio bioético-o Dr. JN volta ao paciente
Dr. PN – Olá LS.
LS – Doutor, vão me operar, não é?
Dr. PN – Sim, LS, a decisão foi esta. Preparado?
LS- Doutor, muito obrigado! Tenho certeza que vou ficar bom.
Dr. PN – A equipe vai trabalhar pelo melhor.
LS – Doutor, quero lhe apresentar a minha filha, a MS.
MS- Prazer, doutor, o senhor é que é o anjo da guarda do papai?
Dr. JN – O seu pai merece nossa atenção.
LS – Doutor, a MS estuda Medicina, logo será sua colega.
Dr. JN – Não diga! Em que Faculdade?
MS- Estudo na Bolívia, estou no 6° semestre. Vim assim que soube da situação.
Dr. JN – Você gosta de lá?
MS – Tem lá os seus problemas. Mas doutor, eu entrei no pubmed…
Dr. JN – E…
MS- … Quando o meu pai me disse que a reoperação era muito arriscada por causa das doenças dele, eu fiz uma pesquisa no pubmed e achei dois artigos recentes sobre um método novo…
Dr. JN – Sim, eu sei do que você vai falar, mas não se aplica…
MS- Doutor, eu entendo bem o inglês, os casos eram bem parecidos com o do meu pai.
LS- Filha, o doutor já confirmou que serei operado. Não preciso de outro tratamento.
MS- Eu até disse para o meu pai que iria comentar com o senhor.
Dr. JN – Você comentou com ele?
LS- É doutor, ela me disse que inventaram um método que coloca a prótese pela perna, não precisa abrir o peito mais.
MS- Doutor, não seria mais seguro para o papai?
LS- Filha, se fosse, o doutor já teria me falado. Desculpe, doutor. Ela está com medo que eu não assista a sua formatura.
Dr. JN – Tenho que ir.
LS- Doutor, o senhor acha que serei operado ainda esta semana.
Dr. JN – Provavelmente, assim que confirmar, você saberá. Até mais.
MS – Doutor, vou acompanhá-lo.
Dr. JN- Estou com pressa.
BBL – O Dr. JN ficou péssimo. O se fosse mais seguro o doutor teria me falado dito pelo paciente foi um direto na consciência ambivalente. No caso anterior fizera o que entendia correto. Agora, mudara a tática por pragmatismo. Mas, no fundo, recriminava-se por esconder informação do paciente. A filha perguntou porque o pai não sabia do novo procedimento. Após receber uma explicação meia-boca, a filha pediu para suspender por enquanto a cirurgia, que ela iria procurar um advogado. O Dr. JN nada respondeu. Disse para si mesmo que LS estava capaz, dera o consentimento para a cirurgia, até exigira mesmo e estava então tudo resolvido. Iria apressar a operação o quanto poderia. Rapidamente, o Dr. JN concentrou-se no que tinha e podia fazer, reviu todos os exames de LS, alterou alguns itens da prescrição. Não pode deixar de reforçar a impressão sobre o extremo risco cirúrgico. O espelho em cima da pia onde fora lavar as mãos denunciava os primeiros cabelos brancos, a etiopatogenia deles não tinha nada de idiopática.
No dia seguinte, MS procurou o DR. JN.
MS- Doutor, me indicaram um advogado especializado em ordem judicial na saúde. Ele me pediu um relatório do senhor especificando que o caso do papai é muito grave, que a operação é muito arriscada e que o melhor seria a técnica com o cateter. O senhor pode fazer logo? Ah! num papel timbrado do hospital para dar mais credibilidade, o advogado disse.
Dr. JN – Mas eu não toquei neste assunto com o seu pai.
MS – Eu falei de novo com ele, não se interessou mesmo, disse que só faz o que o senhor recomenda. Mas o senhor também sabe que se conseguirmos do juiz…
Dr. JN – Se o seu pai não quer, então, está decidido, o relatório que você me pede não tem nenhuma razão.
MS- Doutor, o advogado disse que em 24 horas consegue uma ordem judicial.
Dr. JN – Eu não vou dar, aliás eu não posso dar, este método não está autorizado no Brasil.
MS- Doutor, o juiz manda e aí tem que fazer.
Dr. JN- As coisas não são assim, quem fará? O seu pai será o primeiro? Não pode ser emocional assim.
MS- Doutor, se o meu pai morrer na cirurgia, já tenho advogado!
BBL – O Dr. JN sentia-se vítima de uma grande crueldade. Já não bastava o caso embaraçado, agora estava sendo injustamente ameaçado. Será que não teria sido melhor ter feito como no primeiro caso, conflito por conflito com a família, pelo menos estaria mais confortável de ter sido absolutamente sincero. Algum professor já lhe dissera que treinar diretrizes sem treinar atitudes era receita para sofrimento profissional.
♦ Oitavo pedágio bioético – a reoperação foi marcada
Dr. JN – Enfermeira tem alguém no quarto com o paciente LS… Não… Ótimo.
LS- Doutor, estou piorando, tive uma crise de falta de ar brava há pouco, melhorou com o medicamento na veia.
Dr. JN – Vou examiná-lo. Vim lhe dizer que a operação será amanhã bem cedinho.
LS- Muito obrigado, doutor, será aos 45 minutos do segundo tempo, mas o que interessa é a vitória.
Dr. JN – Com certeza.
LS- Sabe doutor, eu vivi sempre procurando agradar os outros. Tenho pensado na morte, como não pensar?
Dr. JN – É compreensível, mas vamos ser otimistas.
LS – Eu estou otimista, o que quero dizer é que se a vida é influenciada por muitas pessoas, a morte só cabe a nós mesmos.
♦ Nono pedágio bioético – LS vai para o Centro Cirúrgico
BBL- LS foi para o Centro Cirúrgico confiante, com a filha ao seu lado contendo o choro que desabou quando a maca desapareceu da sua vista.
O resultado? Bem, é o seguinte: O blog bioamigo propõe que cada leitor mentalize o final e descreva como se sentiria nele caso fosse o Dr. JN. Envie-nos que publicaremos.