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161- Precariedade de recursos e dever ético

A beira do leito é complexa, insiste no sempre melhor e inspira a paixão do profissional da saúde. Ela testemunha automatismo e criatividade. Ninguém sai dela como entrou, pois sofrerá uma proximidade transformadora, tanto pelo recurso humano como pelo recurso material. Quando estes são bons, permitem seguir adiante no rumo do benefício com o que é necessário e se concorda.

A beira do leito é um patrimônio que viabiliza oportunidades. Como tal, ele tem que ser preservado em relação ao clássico e ampliado em consonância com inovações. Lacunas em bens, direitos e obrigações funcionam desde buracos rasos até abismos no sinuoso caminho dos cuidados com a saúde. Neste contexto, é comum a utilização do termo precário que menos conhecido tende a amenizar a ideia de insuficiência de recursos. O atendimento no Posto é precário soa difuso, cada um tende a interpretar a sua conveniência.

A precariedade de recursos para atendimento às necessidades de cuidados com a saúde do brasileiro é notícia recorrente. Textos comunicam temores, desconfortos, inseguranças. Conformismos de uns, revoltas de outros. Há sempre o perigo da banalização que provoca a resignação (“… não tem jeito, é sempre assim, desde que me conheço como gente…”). Danos por não atender, por não fazer, por fazer parcialmente são motivo de relatos lidos, ouvidos e vistos. Violências à Ética sempre insultam.

O médico está habitualmente envolvido de alguma maneira na precariedade. Da lacuna, ele pode ser o declarante, pode ser o circunstante, pode ser o acusado. Mais raramente, o médico-frente da batalha  representa intercessor eficiente. É exatamente este aspecto de imputação e de ausência de empoderamento que o jovem médico teme, acentuado a cada nova geração, com toda a razão. É sentimento presente no cenário mas carente dos bastidores com a instituição de saúde e com o sistema de saúde por onde transitam os recursos materiais e humanos. É decepcionante para o jovem médico ver-se precisando fazer, sabendo o que fazer e contido na vontade pela precariedade de recursos obrigatórios.

Há vários artigos do Código de Ética Médica que interligam dever ético e disponibilidade de condições de trabalho e que demandam judiciosa análise das mesmas em situações de alegado dano para o paciente. É notório o quanto é fácil para o paciente denunciar a sua insatisfação e o quanto é difícil para o médico expor suas limitações de trabalho. Pendências costumam cair na cabeça do médico refém das precariedades.

Na dissociação entre pretender e realizar, um primeiro aspecto a considerar é o quanto o jovem médico tinha algum dever estabelecido com o paciente que se sentiu lesado. O jovem médico pode não ter tido a oportunidade de sequer ter visto a presença do paciente pelo excesso de demanda, cumprindo suas tarefas com muitos outros num atarefado Pronto Socorro, por exemplo.

Um segundo aspecto é se o jovem médico quebrou o dever profissional estabelecido. Há muitas situações de insucesso clínico onde o dever cumprido que distancia de uma responsabilização por erro profissional é mal ajuizado. O jovem médico atende o paciente, examina-o, medica para os sintomas e coloca sob um período de observação clínica, sem a realização de algum exame útil porque inexistente no local. Um eventual e desastroso intervalo entre um “atrasado” diagnóstico agora permitido pela manifestação clínica evolutiva e um “pronto” diagnóstico que teria acontecido com base no exame complementar indisponível, não deve ser açodadamente imputado a uma quebra do dever profissional estabelecido. Os limites foram determinados pelo momento do atendimento. Houve a prudência possível na observação local do paciente e não houve negligência porque não se concretizou a oportunidade técnica de outra tomada de decisão, que a seguir precisaria ter sido desrespeitada para tal enquadramento ético.

Um terceiro aspecto é a verificação que ocorreu um dano. O jovem médico deixa de passar visita num determinado dia no paciente internado que acompanha há alguns dias porque foi deslocado, de última hora, para atender no Pronto Socorro. A conduta do paciente é “automaticamente” mantida e pela falta do re-exame evolutivo, uma intercorrência somente é percebida no dia seguinte com evidente comprometimento do prognóstico.

Um  quarto aspecto é a correta interpretação que o dano em análise foi de fato causado pela quebra do dever profissional estabelecido. No exemplo acima, se o jovem médico foi prudente em ter avisado à Chefia que ordenou a tarefa diária sobre o dever que ficaria em descoberto é fundamental para um juízo sobre a imputação no dano. Alguém pode entender que o jovem médico deveria ter dado uma “fugida” para evoluir o paciente. Poder, poderia, mas será que deveria estando em Pronto Socorro?

Em Pesquisa clínica, a relação causa-efeito sobre danos nem sempre fica clara. Coincidências existem. Há chance de haver um juízo pela probabilidade de o dano ter ocorrido devido à inovação em teste e um outro associando-o à evolução da doença em si.  O ponto fundamental é o dever estabelecido no consentimento do paciente esclarecido pelo pesquisador.

Recordemos alguns direitos do médico expressos no Código de Ética Médica vigente:

III – Apontar falhas em normas, contratos e práticas internas das instituições em que trabalhe quando as julgar indignas do exercício da profissão ou prejudiciais a si mesmo, ao paciente ou a terceiros, devendo dirigir-se, nesses casos, aos órgãos competentes e, obrigatoriamente, à comissão de ética e ao Conselho Regional de Medicina de sua jurisdição.

IV – Recusar-se a exercer sua profissão em instituição pública ou privada onde as condições de trabalho não sejam dignas ou possam prejudicar a própria saúde ou a do paciente, bem como a dos demais profissionais. Nesse caso, comunicará imediatamente sua decisão à comissão de ética e ao Conselho Regional de Medicina.

V – Suspender suas atividades, individualmente ou coletivamente, quando a instituição pública ou privada para a qual trabalhe não oferecer condições adequadas para o exercício profissional ou não o remunerar digna e justamente, ressalvadas as situações de urgência e emergência, devendo comunicar imediatamente sua decisão ao Conselho Regional de Medicina. 

E ao mesmo tempo, a fábula que indaga: “Quem é que vai amarrar o guizo no pescoço do gato?”.  Alô criatividade!

 

 

 

 

 

 

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