Observo a preocupação de jovens médicos em treinamento sob supervisão com o real cumprimento pelo paciente do passo-a-passo desenvolvido e recomendado de acordo com a mais útil e eficiente sustentação técnico-científica validada. Não se deve supor outra expectativa do idealismo.
O dia-a-dia, contudo é de frustrações. O jovem médico empenha-se pelo bom resultado no decorrer do atendimento, mas o paciente pode não proceder pela mesma cartilha, afinal o aprendizado sobre o que o doutor lhe “ensinou” tem a sua contrapartida individual, motivadora para a captação e para a retenção. Não consentimento, não aplicação no curto prazo ou não adesão subsequente sustentam uma significação pessoal do paciente para o poder de (não) participar ativamente dos cuidados com a própria saúde.
O jovem médico que não se empenha pela “melhor” saúde do paciente afasta-se da excelência do ser médico. O paciente que se distancia dos “remédios” pode ou não afastar-se da sua visão de excelência da própria saúde. Combinações infinitas desafiando a prudência e o zelo.
Neste contexto, o “efeito bula” é forte fator de influência em sua versão estendida, ou seja, a conotação ampla da adversidade como pretexto para descumprir a recomendação, quer um efeito colateral indesejado, quer uma obrigação repetitiva, chata e estraga-prazer. A irônica sensação de um paciente que mudar hábitos é fácil, pois já parou de fumar, já emagreceu e já deixou de ser sedentário por várias vezes! É só querer… Certamente, uma postura na contra-mão da orientação do jovem médico que o almejava ex-fumante, IMC ao redor de 25 e contumaz frequentador de academia. Paciente capaz para tomar decisões perante o médico, não necessariamente capacitado para retomar a decisão longe do médico.
Mau médico está sujeito a sanções com base no Código de Ética Médica. Já o “mau” paciente fica sujeito às sanções da Natureza, nunca a sanções pelo médico ético. Para quem é um jovem médico, fica a informação: nem sempre foi assim.
À minha formatura, não tinha muito desta questão de paciente “ter opinião”. Imagina! Após cerca de 5 décadas, a autonomia está fortemente presente no Código de Ética Médica, o paciente tem direito ao sim e ao não, sem que a não aplicação pela eventual negativa represente negligência do jovem médico, é tão somente uma decepção para a qual formará calos profissionais para não reagir pela revolta irritada sobre o paciente.
Estas considerações remetem à apreciação do poder atual do médico, em seu significado de causar ou impedir mudanças. Estendendo, poder de causar uma mudança na história natural vigente de uma doença -antibiótico- ou de impedir que ela se inicie-controle de fatores de risco.
O poder transformador na saúde lida com atitudes, com emoções e com motivações diversificadas do paciente, do familiar, do colega, de outra categoria de profissional da saúde, da instituição de saúde e do sistema de saúde. Uma inserção que poderia ser um poder de força, de coerção, cabe acontecer eticamente.
O exercício ético significa atenção à prudência e ao zelo. Esta dupla sustenta o padrão a ser rotulado de ético para cada circunstância clínica. As referências são a sobrevida e a qualidade de vida, esta tanto no aspecto momentâneo de um sintoma a ser eliminado imediatamente, quanto ao longo do tempo.
Não obstante, a conotação de prudência e zelo precisa ser ampliada em relação aos demais circunstantes acima mencionados. Prudência como favorecimento ao futuro e zelo como cumprimento de decisões aceitas. É um trabalho de equipe, não basta bem prescrever, tem que ser cumprido de acordo coma estratégia planejada.
Focando no paciente, é prudente conhecer certas preferências e os valores do paciente, aquele ser humano que está sendo cogitado para um tratamento, por exemplo, cirúrgico eletivo. Será imprudente -para usar apenas a linguagem ética- interromper a operação em função de um achado diferente e preocupante, que suscita nova tática cirúrgica resolutiva, para rediscutir o consentimento com o paciente. É evidente que a autorização para a cirurgia não é um cheque em branco, mas pode funcionar como uma procuração temporária para resolver o que tem que ser resolvido.
É zeloso respeitar detalhadamente a tomada de decisão realizada com a participação ativa do paciente, mas seria negligência não tomar medidas de sobrevida no paciente grave em iminente risco da morte que desejava, após tentativa de suicídio e que insiste que não deseja viver, no caminho da UTI.
Nem sempre é fácil cuidar para que a identidade do paciente não seja violada na melhor das intenções do ser médico. É sabido como a relação médico-paciente Testemunha de Jeová pode ser dramática na beira do leito. Vivenciei muitos casos e uma reflexão recorrente é que estava respeitando a recusa transfusional, mas indo na direção do abismo do iminente risco de morte, que daria pleno aval ético para realizar o indesejado pelo paciente, que então, estaria, infelizmente, com o prognóstico severamente agravado, em função do atraso do mesmo método terapêutico.
É exemplo da situação onde o médico contém o seu poder de atuar pelo desejo de manter o paciente vivo, para que o paciente Testemunha de Jeová não venha a se sentir um “morto-vivo” em função da transgressão religiosa.
Ampliando para as relações do médico no ambiente de trabalho, a classificação de poder apresentada pelo psicólogo estadunidense Rollo Reece May (1909-1994) tem ajudado a Bioética da Beira do leito na sua atuação pró-ética médica. Creio que seja de interesse para o jovem médico no seu processo de lapidação ética.
1- Poder explorador- Médico que sujeita paciente ou voluntário de pesquisa a uma situação que é preferencialmente útil para si. Conflitos de interesse podem impedir que o paciente/voluntário de pesquisa faça escolhas, por exemplo. Ocorre uma violência ao Código de Ética Médica vigente (quadro).
2- Poder Manipulador– Médico que se aproveita de uma situação aflitiva do paciente, muitas vezes determinada pela exposição exagerada dos riscos iminentes para o paciente. Por exemplo, a recomendação com tom impositivo de internação hospitalar à margem de critérios bem validados (quadro)
3- Poder Competitivo– Versão ética- Médico ganha estímulo profissional para acender na carreira convivendo com colegas produtivos que almejam o mesmo topo da pirâmide administrativa.
Versão anti-ética- Médico coloca-se sobre outros procurando rebaixá-los profissionalmente para ampliar as chances de obter seus propósitos (Quadro).
4- Poder Nutrício– Médico chefe de Serviço que contribui ativa e prazerosamente para o desenvolvimento profissional dos seus subordinados.
5- Poder Integrador– Médico que dialoga com o paciente e por meio de tese, antítese e síntese direciona uma tomada de decisão a mais harmônica entre a técnico-ciência e o humanismo.