PUBLICAÇÕES DESDE 2014

153- Vingança do médico ou Justiça pelo próprio carimbo?

Direto ao neurônio da Ética de plantão via nervo óptico. Uma manchete sobre Medicina. Como tantas outras, usou a via expressa. Acionou o código verde-amarelo!

A manchete? Foi a da coluna da conceituada repórter especial da Folha, especializada em saúde Claudia Collucci de 1 de setembro: Médicos mal remunerados praticam ‘medicina vingativa’

 http://www1.folha.uol.com.br/colunas/claudiacollucci/2015/09/1676178-medicos-mal-remunerados-praticam-medicina-vingativa.shtml.

As sinapses processaram imediatamente: Médicos  descarregam insatisfações de honorários fazendo maldades para o paciente. Será?  Mas, o paciente em si não costuma ser um ofensor financeiro.

Manchetes  são para isso mesmo, motivar a leitura do texto. Dele fiquei sabendo que a vingança epigrafada não é, de fato, diretamente na relação médico-paciente. Refere-se à demasiada solicitação de exames complementares. E que uma estatística antiga estimou que 20% dos médicos conveniados faziam fraudes para arrecadar mais. Alívio! Parcial. 20%!?

A Bioética da Beira do leito lida com a constatação que insegurança profissional e escassez de tempo determinam abstinências de exame físico e overdoses de solicitação de exames complementares e de encaminhamentos a especialistas. Nada para se orgulhar, mas a prática está ligada a uma noção de responsabilidade, uma prudência para não errar, para não deixar passar um diagnóstico, enfim,”não comer bola”. Inclui aquele raciocínio de afastar, mais do que de identificar doenças. Medicina defensiva, mas nunca Medicina vingativa.

Hoje é tudo muito rápido, o destaque  torna-se suficiente para a recepção “completa” da informação. A mesma liberdade de emitir para a de captar. Entendo que o contexto de manchetes desta natureza, generalizando uma atitude anti-ética, carrega poderio para ampliar o arsenal do “apedrejamento” moral do médico pela sociedade. Destaques contribuem para a perda do que é difícil reaver: a boa imagem do profissionalismo. Felizmente, os alicerces são anti-terremotos.

Careço de informações que sustentem a evolução destes estimados  20% desde a  Sociedade Brasileira de Auditoria Médica, em 1998. Qualquer que seja a taxa atual, deve merecer uma rigorosa análise crítica interdisciplinar multiprofissional. Um Não ao corporativismo inconsequente.D44

A Bioética da Beira do leito adota o conceito  de Integridade do profissional da saúde sob fundamentação da tríade:

Perante um conflito, antes de qualquer intenção de reprovação radical sobre práticas de fraudes na relação médico-sistema de saúde, convém  analisar a literatura. Há um punhado de evidências que muitos médicos burlam “quem paga” para ajudar o paciente. Tal espírito de Robin Hood acontece em alguns locais do mundo, visando a reembolsos para o paciente e a manipulações de diagnóstico e de circunstância clínica para satisfazer cobertura pelo convênio médico.

Em Physicians´interaction with third-party payers. Is deception necessary? os autores da Yale University School of Medicine concluem: “… regras e restrições encontradas na prática médica, podem ser, de fato injustas… Dissonâncias entre cuidados e normas de financiamento tornaram-se tão severas que os médicos mentem como única maneira de trabalhar… É terreno da “Ética institucional” que lida com circunstâncias econômicas, políticas, sociais e ideológicas que criam problemas morais: os meios em que a prática médica é financiada, administrada e controlada… Fraudes representam, assim, sintomas de um sistema falho que gera conflitos com obrigações maiores do médico com o paciente. http://archinte.jamanetwork.com/article.aspx?articleid=217420.

No século XVIII, o filósofo escocês David Hume (1711-1776)  entendia que a Ética não era questão da razão ou da lógica, mas da experiência. É o que se experimentou de prazer ou de dor que motiva expectativas, levando a formar princípios morais: “… Quando um homem chama outro de seu antagonista, ele está falando a linguagem do amor a si mesmo com sentimentos peculiares e que surgem das  situações e circunstancias em que está envolvido… Quando confere a alguém o epíteto de corrupto, a  fala expressa sentimentos que ele espera que toda a audiência com ele compartilhe… Ele precisa distanciar-se  de sua situação privada e adotar um ponto de vista comum a si a aos outros, que ressoe em acordo e em harmonia…”.

Nesta Ética baseada na utilidade Hume pondera que: “… A ambição de uma pessoa não é a ambição de outra e que ambas não podem ser satisfeitas por um mesmo objeto ou acontecimento. A humanidade jamais será  totalmente insensível ao bem público nem inteiramente indiferente às tendências do caráter e da conduta. Todavia, é a afecção humanitária, que talvez não seja considerada tão forte como a vaidade ou a ambição, somente ela, por ser comum  a todos os seres humanos, que pode constituir a fundação da moral ou de qualquer sistema geral de censura ou de louvor…”.

O jornalista e escritor estadunidense David Denby (nascido em 1943), no seu Grandes Livros (Editora Record, 1996), escrito motivado pelo sonho de voltar a frequentar a Universidade após ter adquirido maior experiência de vida, resumiu: “… O que é bom para as pessoas – o que satisfaz os impulsos egoístas-  é por, definição, pessoal, e  portanto nenhuma generalização moral pode ser baseada nisso.  Mas quando se fala de virtudes e vícios genéricos,  cujo bem ou dano é obvio, então fala-se nos valores que se tem em comum. As virtudes positivas e negativas podem ser generalizadas. Certos tipos de comportamento-honestidade, coragem, bondade, amizade- são úteis e agradáveis. Nós os aprovamos. Outros tipos de comportamento- desonestidade, vício, adultério- não são úteis nem agradáveis. Nós os desaprovamos…”.

Cada um faz, evidentemente, o seu juízo de valor sobre o que Francis Bacon (1561-1626) chamou de Justiça Selvagem. Sugiro que na ponderação incorpore as várias nuances do Princípio Fundamental IV do Código de Ética Médica vigenteAo médico cabe zelar e trabalhar pelo perfeito desempenho ético da Medicina, bem como pelo prestígio e bom conceito da profissão. 

Manchetes passam, hábitos ficam. Médicos são diferentes entre si, o Código de Ética Médica é vigente por algum período e atualizado, sentimentos mudam. Se o consenso social da moral não vem da razão, mas do sentimento moldado pela experiência, o contexto da frase mais famosa de Hume Prefiro a destruição do mundo inteiro a um arranhão em meu dedo poderia motivar uma próxima manchete provocativa sobre o tema.

Quem se habilita a dar a entrevista? Eventuais candidatos não deixem de levar em conta a advertência  de Laurence J Peter (1919-1990), o mesmo que disse que o mais nobre de todos os cachorros é o cachorro-quente, que alimenta quem o morde e que o sovina torna-se maravilhoso na memória dos herdeiros. O aviso bem humorado é:  Anime-se, fale enquanto estiver com raiva. Você fará o melhor discurso da sua vida… a ser lamentado.

Ah! Ia me esquecendo, boas férias Cláudia!

 

 

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COMENTÁRIOS

Uma resposta

  1. Manchetes sensacionalistas infelizmente deixam uma cicatriz por mais que seja explicada ou desmentida. O termo vingativa fora do contexto mais uma vez tenta macular a profissão. Excelente texto Professor, espero que muitos que dispensaram segundos com a manchete “vingativa ” usem minutos para pensar nas suas palavras.

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