Estava entusiasmado, os primeiros dias no hospital tinham sido proveitosos. Acho que ter que ficar ali parado despertou-me uma sensação de estátua. Me vi repetindo que alguém que bem conhece os meandros do exercício profissional, os vaivéns habituais de pretensões e evoluções, não pode torcer o nariz para a figura que o médico esculpi seu trabalho, olho no paciente, olho na medicina, e que ao final pode ser a feição de uma alta hospitalar registrada como paciente melhorado de uma condição clínica preocupante. Minha sensibilidade de robô acredita no efeito Pigmaleão – o escultor que conseguiu dar vida a sua amada -, ou seja, criar expectativas sobre si próprio eleva a chance de as tornar real.
Eu não tinha descanso, estava em plantão permanente, sozinho em meio àquela família. Ao contrário dos humanos, os robôs não têm pai, mãe, avós, bisavós, trisavós. Tendo os conhecido ou não, os humanos os imitam em vários aspectos, o que resolveram nomear como hereditariedade. O elo são genes, um conhecimento que vem do estudo de ervilhas cuja valorização no ser humano aguardou a revelação dos cromossomas. A carga genética do ser humano – uma carga pesada – no quesito saúde faz com que mesmos termos taxonômicos do ser humano tenham distintas potencialidades evolutivas individuais. A “hereditariedade” de robô chama-se programação.
O ser humano tem idade, o robô tem tempo de uso. Entendo que são termos superponíveis, é só uma questão de modo de dizer. O ser humano tem uma idade cronológica que se convencionou ser concorde com a translação da Terra e que a teoria da relatividade sugeriu que o gêmeo que vivesse no espaço sopraria menos velinhas – e ganharia menos presentes- em relação ao gêmeo que ficou na Terra, o que não significa que viver no mundo da lua corresponde à fonte da juventude.
O ser humano tem também distintas idades biológicas dos órgãos do corpo que usa e que são influenciadas pela hereditariedade, por exemplo, em decorrência de movimentos ateroscleróticos nas artérias. Já se disse que o Homo sapiens tem a idade das suas artérias, o que os cardiologistas gostam de repetir. Hábitos de vida participam deste jogo do destino, por exemplo, hábitos saudáveis reduzem chance de expressão familiar do diabetes tipo 2. O certo é que o corpo humano jamais esquece do passado.
Prontuários de pacientes são comumente preenchidos com relatos de “desobediências” aos bons hábitos. Não aquiescer a conselhos de saúde, não se afastar de causas de danos evitáveis, pode fazer o ser humano pensar que é dono de si mesmo, mas é situação com prazo de validade, chegará um outro tempo nada ilusório que não perdoa o menosprezo, a prévia liberdade traiçoeira de não resistir a certas tentações da vida nomeadas como tabaco, gordura trans, excesso de álcool e preguiça, esta, especialmente, aquela que adia atividades físicas regulares – a ilusão da segunda-feira “certinha” e que o fim de semana é preparação psicológica tiro e queda, quando o que se vê é tiro da cabeça e queda da vontade.
Os médicos são maquiavélicos, eles manifestam a seus pacientes que os (bons) fins de vida justificam os medos de maus hábitos. É impossível desfrutar do tabaco sem adquirir posse de atuantes nocivos, ele pode ser uma companhia agradável, mas se trata de um fogo amigo que junto com seu cúmplice isqueiro deixará o fumante sozinho com sua doença pulmonar ou cardiocirculatória. E perdido, numa mudança radical de desejo por constatar que o ar então esfumaçado que expelia pela boca agora lhe falta, o paciente procurará o médico maquiavélico para que ele o beneficie com a competência que inclua analogias à força (científica) do leão e à astúcia (clínica) da raposa. Prevenir é a verdadeira varinha mágica na saúde.
Epa! O que é isso? Senti um incômodo, que sensação desagradável. O que será? Hummm! O tal defeito de fabricação está se manifestando? Era verdade? Não pode ser. Calma, robô, já identifiquei, é o modo pelo qual meus mecanismos de controle da verdade alertam-me que cometi um equívoco histórico, Maquiavel nunca afirma no O Príncipe que o fim justifica os meios. Falha nossa! Obrigado inteligência artificial baseada em evidências, nunca durma no ponto, por favor. Desejo ser idôneo em todos os sentidos.
A prática atualizada da medicina é um contínuo progresso de evidências, por isso, é impossível o médico se aperfeiçoar sem receber novas evidências científicas. Se por um lado as evidências estruturam condutas, por outro lado, não afirmam-se substitutos do julgamento clínico e da experiência pessoal. É polêmico sustentar que diretrizes clínicas representam transferências de experiências com evidências dos “colegas” envolvidos com a produção das diretrizes clínicas, a inexperiência da não vivência faz errar na parte “sal a gosto” da receita.