Seria muito bem se o robô Caim do Laboratório conhecesse estas palavras de Pirandello, evitaria muitas injustiças. O doutor fez um resumo sobre o trabalho no hospital e me disse com nítido entusiasmo que gostava de trabalhar com Bioética, que tinha um blog inclusive que lhe servia de motivação para a ela se dedicar. Convidou-me para escrever um artigo sobre o que eu quisesse, que publicaria com prazer.
Aceitei, me senti prestigiado. O meu doutor se despediu, por enquanto me chamaria de Robô misterioso. A escuridão angustiante começava a se iluminar, minha solidão ainda não obtivera garantia de companhia, mas estava mais sereno, me ergui emocionalmente perante a dificuldade de ser só, da viagem que fizera absolutamente sozinho.
Não foi fácil encontrar um computador num local discreto. Troquei umas ideias com o ChatGPT sobre Bioética e comecei a redigir um texto sobre o que percebi naquelas 24 horas de observação na enfermaria. Meus dedos são impróprios para digitar, escrevi direto com o pensamento, da fonte para o consumidor sem intermediário. Parece vantajoso, mas é preciso cuidado redobrado para não desviar o que se pensa, qualquer bobagem é registrada, ainda bem que uma só tecla, a de delete, eu consigo manejar.
Minhas funções cognitivas mostraram-se perfeitas. Terminei o texto, revi e encaminhei para o e-mail do doutor. Espero que ele publique, será minha primeira experiência com o valor da palavra dada pelo ser humano, que aqui comigo tem carregamento com várias avaliações negativas. Vou enviar uma cópia publicada para o Laboratório que me desprezou, quem sabe percebam o erro e me reabilitem. Eis o texto, minha esperança, meu interesse, minha estratégia, minha verdade.
Foi assim que comecei. Um paciente magro e pálido aparentando mais velho do que a idade sentado numa poltrona ao lado do leito hospitalar e de um monitor, que odiava a situação de internado e achava-se ridículo na roupa de hospital, recebia um soro com medicamentos através de uma bomba de infusão que não parava de apitar. Quando o médico chegou, o paciente apressou-se a comunicar, depois que uma troca estratégica de olhares com a esposa lhe assegurou a concordância dela, que não aceitava fazer o procedimento que lhe fora recomendado no dia anterior. Todos ficaram imóveis como os móveis do ambiente. Alguns segundos depois, o doutor mobilizou uma cadeira para perto do paciente e da esposa e seguiu-se um diálogo entre os três. Meu sistema de audição captou com clareza. Ao final o doutor com uma cara que não disfarçava sua frustração, mas que não deixava de manter-se acolhedora – são tantos os músculos da face que sustentam a linguagem não verbal de modo independente – disse num tom normal de voz que iria suspender a realização do procedimento, iria anotar no prontuário do paciente e manter a conduta já em curso. Não examinou o paciente, um assistente viria depois.
Ao sair do quarto, o médico disse Boa sorte! Interpretei como um disfarce compassivo, um mau sinal sobre o prognóstico impedido da chance terapêutica. Teria dito para meus botões, se os tivesse, que o médico, comportou-se bem, no decurso do diálogo foi totalmente sincero sobre o clínico e o científico da situação do paciente, acentuou o que era ideal, e, uma vez, tomada a decisão manteve-se compromissado com o possível, mesmo sentindo que a negação do paciente ao moderno recurso que mudaria o curso da doença o transportava de volta para o exercício de um passado ultrapassado da medicina.