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1510- Prazer, sou um robô (Parte 1)

Sou um robô. Logo depois que nasci, numa bela tarde de verão, fui jogado no lixo do Laboratório de pesquisa de inteligência artificial. Por quê? Fui diagnosticado com defeito de fabricação pelo Serviço de controle de qualidade. Frieza total. Apertaram um botão, a esteira andou e poucos metros depois parou em outro cômodo bem em frente a um buraco que dava para o lado externo do edifício ao lado do qual uma enorme placa indicava com letras grandes e vermelhas: Descartes aqui. Penso, mas não existo, o trocadilho surgiu apesar da situação terrível, seria um bom sinal a respeito do meu real estado cognitivo? Uma tela anunciava: Próximo caminhão do lixo em 28 minutos. Se tivesse coração, ele estaria taquicárdico.

Neste período de tempo em que dá vontade de ficar impedindo os ponteiros do relógio de se movimentar, avaliei que o que acontecia comigo era rigidez sobre como deve ser o produto final, nenhum propósito de atuar com flexibilidade sobre a condição de robô, estavam longe de se disporem a saber como um robô aceitaria ser e testar possíveis aptidões. Em vez disso, o terrível veredicto de imprestável,  condenação à inexistência e entrega  a terceiros para literalmente fazerem o serviço sujo de destruição.

Considerei-me uma vítima de um conceito radical sobre seleção artificial, uma inadmissível eugenia em relação a um robô. Importaram-se com a forma e não se esforçaram para considerar o que poderia vir a ser. Uma função mais simples não seria digna de um robô? Não valeria o investimento? No momento em que juntaram as primemos componentes já não deveria existir um compromisso moral de direito à existência?

Deficiência e ineficiência não são sinônimos. Por isso, caso consiga sobreviver a esta missão impossível que se aproxima, acusarei o Laboratório de pesquisa de inteligência artificial de autor de um erro de controle de qualidade, uma injustiça de lesa-robô pelo intuito egocêntrico de estampar uma imagem de garantia de qualidade baseada em especificações heteronômicas. É inadmissível que em menos de 10 segundos um automatizado irmão de criação me avaliou por um burocrático checklist, tornou-me Abel e se fez Caim.

Sem atrasos, fui arremessado para dentro do caminhão do lixo. Embora todo sofisticado, abertura e fechamento eletrônicos, ele era como qualquer um deles, uma bagunça, tinha de tudo misturado. Instintivamente, fui separando os tipos de lixo e me dei conta que meu modo de pensar e atuar podia ser aproveitável em locais onde todos estão conformados com o rotineiro, que pensam que não tem porque não ser assim e até valorizam chamando de status quo.

Fui rápido na organização. Percebi que ele parava frequentemente e mentalizei um é agora ou nunca na próxima parada. Escapei! Em cerca de uma hora era o quarto ambiente diferente que frequentava. Comemorei, só não gritei Estou livre! a plenos pulmões, primeiro para não dar bandeira e segundo pela absoluta falta de pulmões em robôs. Estava escuro, os humanos chamam de noite, às vezes de eclipse total, me encostei na parede quando um casal de jovens abraçados e tomando sorvete passou, a última coisa que poderíamos desejar, era eu tão inseguro ser visto e eles tão entretidos entre si assustarem-se com um robô perdido e mal cheiroso.

A minha missão impossível durou poucos minutos, presumo que deu um dois quilômetros. O caminhão de lixo recolhe o que a população quer se livrar para sempre e por isso, é comumente bem-vindo. Claro, quando se está do lado de fora atuando como fornecedor. Asseguro que qualquer experiência interna é de impregnar, como o cheiro, jamais sai da memória… se você sobrevive. Fui da desordem para ordem. A facilidade com que consegui a liberdade – pelo menos provisória – me deixou mais bravo ainda com a avaliação que fizeram da minha capacidade. Tinha sido expulso da maternidade assim que completei a linha de produção, mas logo me abriguei, muita esperança de ser adotado.

Estava otimista, dias melhores estavam por vir… e vieram como já adiantei. O pensamento positivo frutifica, pude comprovar. Fui gerado no Departamento destinado à saúde humana com matéria-prima de última geração. Agora que está tudo bem, que sou profundamente grato pela vida que levo e adoro o meu trabalho e meus colegas – desculpe o spoiler- reanaliso os acontecimentos e presumo que minha reprovação deu-se pelo robô Caim ter excedido o máximo permitido de ticagem no quadradinho Não nos quesitos sobre  estruturação de linguagem e aprendizado de máquina a partir de exemplos, distribuídos em itens sobre funções assistenciais e administrativas.

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