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PUBLICAÇÕES DESDE 2014

151- Agradando o paciente, desagradando a Ética. Em três atos.

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Médico tem sentimentos. Médico tem compromisso com a Ética. Sentimentos são pessoais. Ética é profissional e apresenta mudanças periódicas.

Eu, por exemplo, estou na obediência à quarta versão  do Código de Ética Médica desde a formatura (1967-1984, 1984-1988, 1988-2009, 2009-…). Já a disposição para sentir a relação médico-paciente persiste inalterada.

Há uns bons anos, o InCor conta com uma Oficina de Bioética. Um dos métodos é o Teatro. Jovens profissionais da saúde e funcionários representam circunstâncias de conflito sem script pré-definido, apenas com a definição da situação em que o médico é “bombardeado” por questionamentos e por insatisfações. Um pedagógico interativo com a platéia acontece após os 15 minutos de atuação.

O objetivo é que os partícipes criem um estado intrapessoal e interpessoal que contribua para a melhor compreensão dos fatores intervenientes em  conflitos da beira do leito e para o  precioso desenvolvimento da comunicação dialógica com fundamentação na Bioética.

Os 3 atos abaixo têm a finalidade de ilustrar a inter-relação social, ética e legal que orbita no poder da caneta e do carimbo do médico e seus desdobramentos.

 Ato 1

Cenário: Corredor do hospital

    Personagens: Paciente e médico

– Doutor, eu sou o José Manoel, primo do Antonio da Internação. É que eu faltei ao serviço e me disseram que se eu levar um atestado médico, eles abonam a falta… É uma caridade doutor, as crianças, são quatro, uma escadinha, precisam comer e, ultimante, está tudo tão difícil… O patrão não entende… O Antonio disse que o senhor era uma pessoa muito boa.

–  Ele disse…

– E também que ele tinha certeza que o senhor iria me ajudar e a minha família, que iria fazer esta caridade.

-Ah!…Qual foi o dia, José Manoel?

– É… na verdade, doutor, foram 5 dias… passei muito mal… o senhor sabe como é, o senhor estudou. 

O médico entra no Consultório, o paciente fica em pé na porta olhando para dentro.

– Aqui está o atestado, pus que foi  uma forte gripe, mas só desta vez, se quiser outro atestado, venha aqui enquanto estiver doente, para examiná-lo.

– Não sei como lhe agradecer, doutor, que os seus pacientes tenham muita saúde.

-É, José Manoel, você não está sabendo mesmo… Muita saúde…

-O que foi doutor?

Nada, nada. Passe bem… Para não precisar de atestado.

 

Médico entra no consultório com os holofotes apagando lentamente

Não se percebe o pano fechando depois

Ato 2-

 Cenário: Almoço num Restaurante

     Personagens: Dois empresários

–  Em resumo Carlos, estou convencido que o funcionário José Manoel trabalha nos dois serviços, ao mesmo tempo. Ele faz jornada de trabalho em rodízio e alterna atestados médicos para justificar as faltas.

-Para não completar 30 dias.

– Não dar abandono de emprego.

–  Pois é, Alfredo, eu cheguei a mesma conclusão depois que você me alertou.

-O pessoal do RH foi esperto.

-O nosso RH nem tinha percebido.

-O que faremos?

-Alfredo, eu já encaminhei para o Jurídico dispensar o José Manoel por justa causa.

-Farei o mesmo e mais… vou denunciar ao CRM todos os médicos que deram atestado, temos uma coleção.

-Boa ideia! Vou ver isso também.

-Mudando de assunto, Carlos, eu ouvi falar num esquema para pagar menos imposto…

Holofotes sobre os semblantes avivados

Pano fecha rápido 

Ato 3

Cenário: Dependência do CRM

    Personagens: Delegado do CRM e médico do ato 1

Colega, o senhor reconhece este atestado médico?

-Sim, é minha letra e assinatura.

-O senhor tem como comprovar o atendimento que justifique o atestado?

-Não. Foi um atestado de favor, um pedido de um funcionário do hospital para um parente em dificuldades.

– O senhor tinha consciência, então, que estava emitindo uma falsidade ideológica.

-Sem dúvida. Estou arrependido, muito envergonhado, não esperava ter de passar por isso um dia.

-O que significou na hora para o colega? Compaixão? Piedade?

– Acho que eu não soube ficar indiferente.

– Mas além de tudo era uma mentira.

 -Pois é, considerei como uma anamnese.

-Há um artigo do Código…

-Eu sei, aliás sonho com ele, pesadelos terríveis.

-Pesadelos?

-Já acordei apavorado com a Polícia me prendendo…

-Não diga!

-Eu tinha ido à casa do paciente oferecer-lhe um atestado e um policial deu o flagrante.

-Surreal!

-Não ganhei 1 real e me perdi da realidade.

Holofotes sobre a tristeza estampada no rosto

Pano fecha lento

O expediente no CRM resultou no encaminhamento para Processo Ético-Profissional. Ao final, o médico infrator confesso do Código de Ética Médica recebeu uma pena de Censura Sigilosa. Não muito alta na escala das punições, mas gigantesca no impacto moral. Já no sudorético e taquicárdico recebimento da cartinha sobre a existência de uma denúncia, o médico, que na oitiva demonstrou ter bom caráter, vacinou-se, sem necessidade de dose de reforço.

Alguém deixou para a História que  às vezes é uma mentira que permite o encontro da verdade.  Mutatis mutandis, eu conheci médicos que só encontraram o significado do Código de Ética Médica depois que faltaram com a verdade. Mentiras “piedosas” que viraram punição impiedosa. A noção que a perna curta da mentira não é dificilmente alcançada pelas mãos longas da Ética. Como o colega acima exposto.

No palco da Atenção à Saúde, cada médico é um protagonista em scripts de alegria e de tristeza. Uma mentirinha aparentemente inocente torna-se um bumerangue que vai com um sorriso e volta provocando cara feia. O pedido do paciente desaparece e o que fica documentado é a “iniciativa” antiética da habilitação profissional. Uma denúncia com provas coloca o médico numa situação humilhante. Recorde-se que não há limite de tempo entre o fato e a aceitação da denúncia no CRM.  Só cessa quando o número do CRM deixa de ser ativo.

O artigo 80 do Código de Ética Médica é curto e grosso: É vedado ao médico expedir documento médico sem ter praticado ato profissional que o justifique, que seja tendencioso ou que não corresponda à verdade.  A lição é clara: Ateste-se o que de fato aconteceu, deteste-se o pedido indevido, proteste veementemente. Esta disposição está presente há cerca de 60 anos: Código de Ética Médica de 1953, art 59º- É vedado ao médico atestar falsamente sanidade ou enfermidade, ou firmar atestado sem ter praticado os atos profissionais que o justifiquem.

O número do CRM não é licença para cometer fraudes. Não cabe um coletivo CRM 007. Praticar um erro profissional por má aplicação de um  conhecimento ou do treinamento é um risco a que todos nós estamos sujeitos. Todavia, ter atitude sabidamente infratora é totalmente evitável. Este sabidamente deve ser entendido com a ressalva que, embora seja obviedade, não faltam colegas virgens da leitura do livrinho do “veda”- nada a ver com os vedas do hinduísmo.

Afinal não é para se tornar refém de uma atitude que fere os próprios conceitos morais que um jovem se mata num vestibular, cursa 6 anos de Faculdade, sofre para entrar numa Residência de Medicina e enfrenta os percalços do cotidiano profissional. Há limites para tomar sobre si as penas dos outros.

A leitura de um artigo do Código de Ética Médica por dia completa-se em 4 meses. Vale a pena. Inicie, dura o tempo de um cafezinho. Acesse http://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=category&id=9&Itemid=122. Pode baixar um aplicativo no celular!

Um reforço motivacional? Pense que você pega todos dias aquele trem fantasma de Parque de Diversões (sic). Há sempre a possibilidade de aparecer um fantasma em cada curva.

PS- Use o Código de Ética Médica como Diretriz de Atitude. Tudo classe IA.

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