O colega me contava que estava aprendendo como o corpo fala. O filho de 6 anos, de mãos dadas e atento, levantou a cabeça, encarou-o e complementou com a naturalidade da criança: “… É só abrir a boca, papai”.
Serão precisos alguns anos para que o jovem entenda o valor da comunicação extra-verbal. Se ele se tornar médico, então, terá lições diárias transformadas em instrumento de trabalho. A Bioética da Beira do leito reconhece a utilidade e a eficácia da expertise em interpretação de mensagens “caladas”. Elas são emitidas pelo paciente, habitualmente, de modo não conscientizado. Não é incomum certa dissociação entre o afirmativo/negativo da palavra vocalizada e o que gestos refletem.
A mesa que separa médico e paciente marca território. Atendimentos ambulatoriais costumam entremear-se de movimentos posturais de “invasão”. Eles expressam intenções de adesão-conciliabilidade ou de violação-hostilidade. Dão circulação à atmosfera humana que envolve o face a face.
O antropólogo estadunidense Edward Twitchell Hall Jr (1914-2009) estabeleceu 4 zonas de relacionamento humano (quadro). Um ato médico utiliza mais comumente o íntimo – exame físico, por exemplo- e o pessoal – anamnese, por exemplo. http://www.csiss.org/classics/content/13
À medida que o número do CRM desce em relação ao dos recém-formados, o aprendizado sobre a linguagem corporal sobe. É a voz da experiência- silenciosa, evidentemente- da experiência. Como as expressões são em número relativamente pequeno, elas se fazem de modo bem repetitivo, uma vantagem pedagógica. Diríamos que linguagem corporal ou comunicação não-verbal é dialeto da beira do leito, um excelente biomarcador da conjuntura interpessoal.
É curioso como piscadela dos olhos, coçar embaixo do nariz e dar de ombros representam movimentos simbólicos, a serem interpretados, muito além das possibilidades da existência de um cisco, de uma alergia ou da perturbação por um mosquito. Eles expressam trânsitos mentais e decifrar o código individual desta comunicação não-verbal faz parte da chamada arte da Medicina.
Todo médico- e o profissional da saúde de modo geral- testemunha cenários como: Paciente, de repente, cruza os braços sobre o peito? Sinal que a crítica que recebeu do médico desagradou. Ocorreu aquela midríase bilateral que facilitaria um exame de fundo do olho? Boa chance que a proposição ou a explicação do médico tenha gerado vivo interesse. Os óculos escuros com que o paciente entrou no consultório foram tirados após alguns minutos de conversa? Forte indício que o paciente relaxou a tensão do encontro inicial e dispensou, assim, o uso de uma barreira.
O médico observador, bom de ofício, sedimenta camadas de linguagem não-verbal que lhe facilita erguer-se a um nível de olhar bem receptivo e perceptivo de mudanças de reação do paciente/acompanhante/familiar/cuidador. Ele aprende a decodificar a cor da luz do “semáforo” interpessoal como orientação para a condução do momento mais bem ajustada ao contexto do caso.
Há poucos dias, o seguinte relato foi fundamental para compor o cenário de uma crise da beira do leito: O acompanhante-familiar do paciente internado, todos os dias levantava-se e cumprimentava sorridente o médico, quando este entrava no quarto do paciente. “Inexplicavelmente”, ele permaneceu sentado com aparência sisuda, num determinado dia e no seguinte. Uma imagem que valia por mil palavras. Logo em seguida, “choveram” reclamações sobre o colega que assistia o paciente, que solicitou o “guarda-chuva” da Comissão de Bioética.
Sem o propósito de estabelecer padrões, até porque há influências de vieses culturais, a inclinação para a frente, um quase debruçar sobre a mesa do médico, com semblante amigável, sinaliza “verde”, que continuemos desta forma. Tamborilar com os dedos sobre a mesa, consultar o relógio, sinaliza “amarelo”, que o médico saiba que a objetividade está comprometida. Já aquela olhada para o celular com uns toques de busca, por mais rápida que seja, sinaliza “vermelho”, que fique claro para o médico que há coisas mais importantes para este paciente se preocupar e “desligar-se” do face a face.
Há, pois, uma soma do dito “pela boca” -palavra e entonação- e do mostrado pela anatomia complementar- falar pelos cotovelos, à parte. Quando o conjunto é diligentemente ouvido e enxergado, funciona como vitrine da maturidade e da segurança do envolvimento do paciente à forma como o caso está sendo estruturado para uma tomada de decisão. Deduz-se, pois, que a apreciação da linguagem corporal do paciente é útil para o médico ter “acenos” sobre a compreensão e a receptividade aos esclarecimentos que antecedem o bater do martelo do consentimento-ou não.
Ademais, a linguagem corporal do paciente expõe, subsequentemente, o “como eu estou dirigindo”, até de modo antecipatório à verbalização.
Em resumo, a Bioética da Beira do leito dá alta importância à expressividade da linguagem corporal/comunicação não-verbal como sinaleiro do direito do paciente de participar ativamente de tudo que se refere à aplicação em si de cuidados com as necessidades de saúde.
Portanto, a linguagem corporal é um biomarcador que alerta o “ombusdman” que existe em cada médico prudente e zeloso, guardião da consciência profissional e amplia a recepção da comunicação de um SIM e ou e NÃO e, assim, contribui sobremaneira para mais ajustada inclusividade da relação médico-paciente no bioético Princípio da Autonomia.