Duas experiências associadas ao chavão “salvar vidas” do médico, etiqueta criticável pela limitação humana, afinal as gerações devem morrer para dar lugar à geração seguinte, mas que nos faz lembrar que foi Quiron (origem do termo cirúrgico e quem criou Asclépio) que ofereceu sua imortalidade para livrar Prometeu – que roubou o fogo de Zeus, o que é modernamente interpretado como a busca do conhecimento pela ciência – das correntes e da tortura. Medicina e conhecimento de mãos das com a Bioética para lidar com uma série de conflitos que de alguma forma se resumem em angústia com expectativa de vida. O fogo é obediente, fornece uma força ilimitada, mas é traiçoeiro e requer expertise no uso.
A afirmação de precursor da Bioética para Hipócrates é lícita em função de demonstrações da sabedoria sobre os altos e baixos do valor do conhecimento em relação à condição humana e que, pela legitimidade dada por ter posto “a mão na massa”, cuidadoso e ponderado, firmou uma autoridade que deu merecimento à epígrafe de Pai da medicina – potencializado pelo ponto de vista freudiano da eterna busca dos indivíduos pelo pai (ou mãe) que deu segurança e estabilidade emocional na infância.
No contexto da Bioética, o sonho de Hipócrates criou um modelo desperto mais voltado para o que se deve pensar do que para o que se deve fazer- haja vista o Juramento. A grandeza dos primórdios que persiste disponível para uso contemporâneo deve ser preservada de desatenções e descompromissos- e de vaidades iconoclastas. Hipócrates não usava jaleco, não tinha um estetoscópio sobre os ombros, não usava carimbo, não era chamado de doutor, sua dedicação ao que acreditava é que deu-lhe a imortalidade.
Após sua morte- só se torna imortal após morrer- não há registros disponíveis sobre nomes de sucessores, o seu legado foi essencialmente documental pelo Corpus Hippocraticum que se entende não composto exclusivamente por Hipócrates e supostamente com um efeito de proximidade inspiradora pelo genro Pólibo e que abrangia as transformações dos quatro elementos constitutivo da natureza humana, sangue, bílis amarela, bílis negra e fleugma como mecanismo fisiopatologia de doenças.
Uma lição é que quando cabe a designação de pioneirismo/legado/imortalidade, o contexto inicial é fundamental, mas não necessariamente o conhecimento apresentado. É a semente que no caso da ciência e, particularmente na medicina, tem um devir de remodelações, adaptativo, jamais definitivo. O médico canadense Lewellys Franklin Barker (1867-1943) que clinicou na Johns Hopkins University escreveu a respeito do desenvolvimento da ciência do diagnóstico na passagem do século XIX para o século XX: “… O médico que dormiu em 1890 e acordou em 1917 sentiu-se um desorientado Rip Van Winkle (personagem de Washington Irving, 1783-1859, que dormiu por 20 anos, “congelou no tempo” e quando acordou encontrou um mundo totalmente diferente do que conhecia), verificando quão antiquado estava o seu conhecimento sobre propedêutica…”. Ele perdeu no sono prolongado a inovação não somente da eletrocardiografia, também da radiologia em 1895 (Wilhelm Conrad Roentgen, 1845-1923) e de exames sorológicos como a reação de fixação de complemento para o diagnóstico da então prevalente sífilis em 1906 (August Paul von Wassermann, 1866- 1925). Para dar um toque patriótico, a nota preliminar sobre a reação de fixação de complemento de Machado (Astrogildo, 1885-1945)-Guerreiro (Cezar, 1885-1949) para diagnóstico da doença de Chagas data de 1913. Atualmente, o período de validade encurtou sobremaneira.