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Bioética e preservação antropocêntrica
Não devemos perder a fé na humanidade. A humanidade é um oceano que não se torna sujo quando algumas gotas ficam sujas, Mahatma Ghandi (1869-1948)
Proximidade com máquinas e comportamento de animais trazem o risco de desumanização do ser humano pela óptica do momento e estimulam variações de entendimentos sobre humanização. O termo exame complementar – fria relação máquina- ser humano – evoluiu em poucas décadas para um contexto de mais intimidade clínica e, não infrequente, faz por usurpar o adjetivo soberana da velha clínica.
Assim, bioamigo, é essencial distinguir que uma coisa é o benefício da acuidade do exame de imagem como olho de lince (na mitologia grega Linceu tinha o poder de enxergar através das pedras e achar tesouros escondidos) que identifica meandros do corpo humano só adrede possíveis por uma visão anatômica direta, outra coisa são as decorrências de comportamentos-máquina.
As adaptações éticas pari-passu às incorporações da tecnologia têm um exemplo brasileiro marcante. Recorde-se o suicídio de Albert Santos Dumont (1873-1932) atribuído por biógrafos ao desgosto de após intuir que o ser humano poderia voar como as aves presenciou a máquina com que conseguiu dar ao ser humano uma reprodução do comportamento animal voar para fins bélicos. Mais recentemente, surgiu uma informação gravíssima sobre a aviação da qual Santos Dumont nem fazia ideia: Os vórtices provocados pelo movimento dos aviões afetariam a circulação de ar e a dinâmica de perda de água da atmosfera com forte influência sobre a temperatura na Terra.
A saga de Santos Dumont conjuga-se à lembrança mitológica de Ícaro que improvisos derretem, literalmente. Dédalo, o pai de Ícaro, representa o valor do controle sobre a aplicação técnica: por um lado, ele ergueu um labirinto grandioso pela permanente supervisão, por outro lado, ele não pode fiscalizar o conselho dado ao filho para que não se aproximasse demais do sol para não liquefazer a cera que colava as asas aproveitadas de pássaros.
Na perspectiva do pós-humano, o alerta do século XX que o corpo humano não é reunião de órgãos fica abalado pelas possibilidades de independências funcionais possibilitadas pela tecnociência, ou seja, mais talvezes complicados podem surgir das grandes transformações e reorganizar significados para o exercício profissional.
As interpretações de benefícios do Conhece-te a ti mesmo (a inscrição do santuário de Delfos que se tornou a pedra de toque da psicoterapia), do uso da intuição e da aplicação da tradição precisarão de ajustes aos novos eus e aos novos todos. O respeito ao direito ao princípio da autonomia no sentido da voz ativa pelo paciente adquirirá contornos inéditos das habituais contraposições com o princípio da beneficência, inclusive pelo impacto nos intervalos de tempo entre estímulo (recomendação) e reação (consentimento), por exemplo, numa participação algorítmica da inteligência artificial.
A militância entusiasta em Bioética obriga-se a, assim, incluir o nobre propósito de mergulhar fundo (conhecemos um pouco apenas sobre o visível deste iceberg) nos objetivos dos (re) pensamentos sobre o futuro da atenção às necessidades da saúde a reboque de um progresso infinito que tende a desembocar num além do humano..
Bioamigo, confesso que não consigo mentalizar um ser pós-humano com radicalidade, o que alcanço é o transumanismo algo como a quebra de recordes por atletas, uma sucessão de índices aperfeiçoados, mas que jamais chegaria ao zero. Creio que o espírito da Bioética se adapta perfeitamente a esta forma cautelosa de (pre)ver o pós-humano na área da saúde.