A literatura médica serve de condutor para movimentações que envolvem a utopia configurando um trabalho de Sísifo. As inquietudes do sobe para alcançados e do desce para pretendidos, além de cooperarem para preservar intenções das concepções originais nas realizações e para evitarem ostracismos, denunciam o imaginário permanentemente focado em caminhos para a perfeição na saúde.
Muito da noção que a sustentabilidade do ecossistema da beira do leito beneficia-se de transformações das relações ser humano-tecnociência está presente no desenvolvimento da robotização e da inteligência artificial – enredando o ser humano num clima passível de admiração e de temor- na área da saúde para lidar com situações cada vez mais complexas (mais e mais dobras a serem revertidas).
Focando na História do Brasil, é impressionante como em cerca de 500 anos, a estreita inter-relação dos indígenas com a natureza – suas ervas medicinais- caminhou para uma hierarquização da relação ser humano-tecnologia, com sérios prejuízos para a natureza, uma “razão brasileira” para sustentar o conceito de Antropoceno.
VIII
Uma visita da Bioética à ilha da Utopia
O segredo da criatividade é saber esconder bem as fontes, Albert Einstein(1879-1955)
Pois é, bioamigo, embora a complexidade na atenção às necessidades da saúde aconteça em progressão geométrica – achamos que estamos deixando passar algo quando a situação clínica soa simples -, não podemos esquecer que persistem simplicidades resolvíveis tão somente por condutas diagnósticas/terapêuticas/preventivas que se associam a aspectos éticos corriqueiros. Mas, é bom ter em mente que um dia eles foram novidades… e dúvidas.
É pedagógico idear que recursos tradicionais, um dia, habitaram a ilha da Utopia (um lugar mental do que -ainda- não existe na realidade, criação de Thomas Morus (1478-1535) e de lá migraram para o ecossistema da beira do leito. A autorização para o transporte deu-se fundamentalmente pela conjunção dos tremendamente humanos bom-senso (distinguir do senso comum que, embora desejável a partir de um debate cultural livre e aberto, sujeita-se a ficar atrelado a uma pressão irresistível e a uma compulsão de unanimidade que pode conduzir a impropriedades de reducionismo e de banalização na beira do leito) e juízo crítico (o mais lógico e não contaminado por desejos e hipervalorizações). Este par representou a Bioética enquanto ela aguardava a maturação da concepção, e, hoje, compõe seus sustentáculos.
Há várias motivações para habitar a ilha da Utopia e geralmente alinham-se à criatividade em consonância com a ciência e a técnica. É sempre útil relembrar que a fé provocou uma incursão na ilha da Utopia e rápido e bem-sucedido retorno para o ecossistema da beira do leito. O aspecto mental foi a crença pelo reverendo inglês Edward Stone (1702-1768) que Deus coloca o remédio próximo à doença e o sucesso foi a sua descoberta do salicilato de sódio na casca do salgueiro existente num pântano que provocava febre dos pântanos.
Van Rensselaer Potter (re)criou a Bioética há 50 anos estimulado pela preocupação com a falta do par bom senso e juízo crítico acerca das decorrências hostis de pretensões beneficentes do ser humano sobre a humanidade (noção do Antropoceno), não o ser humano como um caçador-coletor -portanto não repositor- do tempo dos bandos pela floresta, mas como um empreendedor-transformador urbano extremamente instrumentalizado.
São inúmeras as fontes atuais de inquietude éticas e morais. A manipulação genética das sementes, por exemplo, acresce preocupações inexistentes quando as sementes caiam no chão pelo consumo descontraído das frutas e se encarregavam da reposição natural. Oportunidade para nos lembramos da Emília e do Visconde Sabugosa tornados humanos (prosopopeia) e dispostos a reformar a natureza na criação de 1941 de José Bento Renato Monteiro Lobato (1882-1948), um escritor com “veia científica”.