Se pode ser admissível que seríamos tiranos se pudéssemos, alguns dos supervisores do jovem médico pareciam endossar, firmara convicção. Indispunha-se com a observação que o tempo de aprendizado tão preciso da Residência médica pudesse estar sendo mal aproveitado.
Fixara a ideia que o Sistema de modo sorrateiro vale-se do tempo para distorcer, manipular, acuar em nome de uma realidade hipócrita. Não pestanejou para afirmar-me, nada receoso que eu poderia compor este sistema. Fez-se sorrir com os olhos acima da máscara contra Covid-19, expressando minha concordância crítica. É diluído, mas acontece.
Logo me veio à mente alguns alicerces do pensamento cabível na militância em Bioética: que a moeda tem dois lados iguais na medida e diferentes na aparência, que a Caverna de Platão é pedagógica para os tempos atuais e que uma medicina ultra defensiva se torna ofensiva. Se males precisam ser combatidos, é preciso distinguir um conjunto de alegados males do presente da beira do leito que tem sido dito que precisariam ser evitados por conjecturas de ameaças ao futuro. O racional do vai que… O paciente alega que não sabia…
Visualizar o paciente com um véu que encobre um impaciente denunciante e ainda mais achando que é sempre assim, é repreensível postura profissional de desconfiança com o paciente, que está bem que precisamos ser cautelosos com ingenuidades circunstanciais, mas generalizar a desconfiança num a priori seria enveredar pela misantropia. Chegamos mesmo a esta necessidade de planejarmos o bem sincero de dentro do nosso interior, e ao mesmo tempo, de nos resguardarmos juridicamente de um mal biológico eventualmente resultante por efeitos adversos do método beneficente? A comunicação sem vieses é uma vítima desta bula perdida.
Esta questão nos remete para o paradoxo da Pessoa Escondida formulado por Eubulides de Mileto no século IV ac: Um homem entra usando um capuz, perguntado, você diz que desconhece quem é. Ao tirar o capuz, é seu irmão. Então você disse que não conhecia o irmão. Trata-se de um paradoxo ligado à intencionalidade, ou seja a um estado de consciência adaptado a uma intenção, a um propósito, no caso direcionado ao encapuçado e que articula-se com o silogismo: eu conheço meu irmão, eu não sei quem é o encapuçado, portanto o encapuçado não pode ser meu irmão. As duas primeiras premissas soam verdadeiras e a terceira soa falsa. Na mesma linha pode-se conhecer o Super-Homem e não o Clark Kent, embora sejam as mesmas pessoas. A correspondência que surge é: sob o ponto de vista do supervisor do jovem médico com excesso de cautela, nunca se pode saber quem o paciente é de fato, Super-Homem é diferente de Clark Kent. Sob o ponto de vista do jovem médico numa visão mais amistosa, há chance de o paciente ser bem seu irmão e deve-se lidar com naturalidade com o processo de transformação entre Clark Kent e o Super-Homem.
Bioamigo, males é que não faltam no dia-a-dia do profissional da saúde e desde Hipócrates o médico precisa evitar ser etiologia dos mesmos direta ou indiretamente. Por exemplo, contribuindo para o efeito nocebo (oposto ao placebo), ele existe, posso afirmar. Se você der muita ênfase a adversidades de um fármaco, além de nutrir o não consentimento da recomendação pelo paciente, aumenta as chances de acontecer. Assim sendo, pensar no paciente de modo geral como um inconfiável futuro denunciante de má conduta profissional, uma predisposição para moldar a todos como nossos futuros agentes de processos equivaleria ao nocebo. Em função de desvios da naturalidade de palavras, gestos e atitudes de menos ou de mais, é de se prever um clima psicosocioambiental maléfico para a conexão médico-paciente, mais riscos dela cair. Como ouvia na minha cidade natal, vai dar ruim.
Perspectivas sombrias afetam o acolhimento na beira do leito e desta maneira nutrem o cogitado sobre danos. É interessante como sofrer um processo ético dificilmente ocorre com o profissional da saúde que é prudente e zeloso, ou seja, ele acontece com uma parcela ínfima dos atuantes no ecossistema da beira do leito. Contudo, o Termo de consentimento para tudo, cada vez mais, climatiza a beira do leito com os ares pesados do pensamento enviesado pelo negativo. Fica complicado distinguir entre necessidade porque processos acontecem ou porque assim os evitamos, sem falar nas influências de outros partícipes do ecossistema da beira do leito. Como o verdadeiro esclarecimento ao paciente continua sendo aquele que lhe é dado diretamente, via oral, no processo de tomada de decisão, por exemplo, de modo tradicional na consulta ambulatorial, o Termo por escrito resultou mal entrosado entre quem acha que precisa e quem recebe a incumbência de aplicar e escorregou para o burocrático, trazendo sobrecarrega para o ralo da ética. Assistência e pesquisa clínica diferem, a primeira lida com paciente a quem a medicina precisa se doar, a segunda com voluntário que se doa para a medicina.
Bioamigo, a vivência a respeito da burocratização do Termo de consentimento na assistência motiva cogitar que está em curso uma síndrome da beira do leito ameaçadora, aparentemente já endêmica, que rebaixa o tão necessário estar à vontade profissional e substitui por uma falsa sensação de segurança, como se o Termo de consentimento fosse um salvo-conduto. A etiopatogenia da síndrome da beira do leito ameaçadora é o temor além da conta de sofrer um processo, que passa a exercer preponderância, para alguns profissionais, eles já se veem numa oitiva, o que se torna torturante, se começa só se avoluma com o passar dos casos e, inclusive, admite a hipocondria moral (conforme Erich Fromm, 1900-1980, excessiva preocupação com a própria imagem, teme-se “pegar” culpa). A fisiopatologia é a transformação da prudência, racional que busca a previsão objetiva, em medo, sentimento maior do que a razão, autoprotecionista, fator de insegurança, paralisante. A manifestação clínica pode incluir nervos à flor da pele, cinismo, desacolhimento, superficialidade. Já a prevenção da suposição de algum cavalo de troia na conexão médico-paciente, é o aconselhamento pela Bioética, seu uso como antivírus ético/moral/legal.
Por enquanto, deve-se registrar a bem da verdade, o entendimento da Bioética da Beira do leito que o registro do (não)consentimento pelo paciente no seu prontuário seria o suficiente – à moda antiga – tem sido derrotado. Tenho dois Termos de consentimento por mim assinados, ambos foram apresentados imediatamente antes dos procedimentos, só me cabia assinar aqui, um deles até já sem os óculos, para não prejudicar a programação. O que estava escrito? Desconheço. Mas me lembro muito bem do Sim que verbalizei nos momentos das tomadas de decisão. Não me considero um Encapuçado para ser um paciente temido pelos meus médicos, a apresentação do Termo foi o cumprimento de uma rotina, mas bioamigo, quantas vezes você respondeu a um paciente que ele não tinha razão da reclamação porque a informação estava no Termo de consentimento que assinara? A propósito a história do zero é instigante.