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1170- Sem dúvida, temos dúvidas (Parte 9)

Depois dos cumprimentos rápidos, auto apresentação sumária, eu já com bloco de anotações e a mania do lápis bem apontado a postos, observei que ao telefone ouvira um exagero. Cada momento da mesma emoção pode mesmo provocar variações de intensidade do que aparenta, por isso, o valor da metáfora do iceberg, a maior parte fica invisível da superfície, um ensinamento precioso da natureza.

Suas expressões e palavras iniciais, aparentemente repassadas ao espelho algumas vezes, agora um teleprompter virtual online, indicavam que o jovem médico estava mentalmente ativo, animado, otimista mesmo, permitia-se evidente liberdade de perspectiva e atuação, embora estivesse numa experiência inédita. Sugeria que dele poder-se-ia supor uma inteligência emocional adequada para trabalhar conflitos profissionais.

Não observei nenhum critério para supor depressão. Um alívio, pois quando presente embaça o diálogo e vira uma roda dentada e sem lubrificação. Também não se identificava como vítima indefesa, podia ter uma vítima dentro de si, mas não se aprisionava a esta parte, não era uma vítima no seu todo e, aquela, que fosse derrotada, precisava.

Ademais, não parecia ter vindo para um duelo, a razão estava mais para uma ida ao confessionário, talvez ignorando que a Bioética gosta de alegoria, substituir o contexto original com outro figurado para que um duelo entre eles contribua para melhor entender significados no conflito apresentado. Os princípios da Bioética esgrimam entre si. O Touché da autonomia tem prevalecido.

Após uma hesitação inicial de conexão para a fluência do que sairia da boca, dada aquela inspiração profunda que fazemos para ganhar confiança, já de cara se justificou. Engatou a marcha para a frente, acelerou e desabafou, com leve sotaque sulino. Ele sabia muito bem que a apreensão tinha tudo a ver com uma perspectiva de hereditariedade, aliás um desconforto de já há algum tempo. Intimamente, ele creditava os momentos de preocupação com potencial crise existencial ao genoma e, já com raciocínio de médico, lamentava que nada havia a fazer quanto à etiologia, mas muito deveria fazer acerca das decorrências. VisitasÀ medida que falava, como se houvesse uma sucção pelo fluir das palavras, os óculos escorregavam pelo nariz, e, no automático, reposicionava. Reparei, então, que usava anel de formatura, que também usei até perceber que ouro e esmeralda eram um atrativo perigoso dada a insegurança urbana. Nunca mais usei o presente de formatura dos meus pais, só me lembrei dele quando me inspirou para escrever Visitas para Um Jovem Médico com enredo baseado num anel de esmeralda envolto em misteriosos poderes.

Esclareceu que assustava-o a possibilidade da reprodução de atitudes paternas frente a dificuldades profissionais que haviam lhe provocado um trauma doméstico que carregava desde a adolescência. Não deu detalhes, teria sido inconveniente da minha parte interrogá-lo a respeito, assim, pareceu suficiente a representação de um pai frágil que se materializava como um inimigo poderoso à espreita. Ele não desejava ser indiferente a esta pedra do caminho. Estava atrás de estratégias reversivas para não vir a imitar o pai obrigado por algum gene transmitido… sem seu consentimento.

Acionou-me os neurônios estrategistas. Penso que todo militante em Comitês de Bioética ousa desenvolvê-los. De vez em quando,  de um cantinho da mente onde dúvidas costumam se esconder para não perturbar muito, surge a incerteza se a sedução da Bioética só se efetiva quando há alguma facilitação genômica, ou, se a receptividade depende de algumas peculiaridades de formação humanística. Juntando, acho mesmo que o acerto da flechada de um Cupido ético deriva do modo de retesamento do arco para atingir o interesse humanístico já relacionado à expressão genômica.

O jovem médico manifestava-se em borbotões. Não o interrompi, o que nestas situações de despejo emocional é sempre bom. Além de expressar respeito, os instantes altamente compactados formam um bloco descritivo que facilita prestar atenção nas entrelinhas e já destacar um ou outro ponto do relato. Até aconteceram uns momentos de exaltação, parecia que ia se levantar e socar algum imaginário, mas manteve o controle, creio que a máscara anti-Covid-19 provocava algum efeito de hipercapnia perante o tenso esforço discursivo.

Sua fala sem vírgulas, muito menos pontos, semblante compenetrado parecia interminável, num misto de muita pressa para dizer e nenhuma pressa para acabar, um descrever-se sem folga e linguagem escorreita, – o bioamigo pode imaginar a cena.

A exposição foi bastante comunicativa, sabia bem o que precisava dizer, nada que pudesse ser presumido inútil no decurso do discurso. Cabeça baixa para máxima concentração, de quando em quando me olhava, creio que para se certificar da minha atenção. Calou-se quando sentiu que o monólogo já dera um alívio à carga acumulada. Ele foi eficiente, pude recolher um sumo… ou seria resumo?

Creio que não é demasiado registrar que havia no jovem médico uma obsessão de livrar-se de qualquer possibilidade de ser um charlatão mental, que lhe exigia malabarismos adaptativos com que aparentemente lidava bem, embora gerasse a apreensão, para manutenção da trajetória profissional isenta de um desfecho em burnout. Diante do conflito que vivenciava, o jovem médico privilegiava a fidelidade a si próprio e, por isso, a preservação do seu interior tinha que afastar qualquer efeito manada que soasse como tão somente conformismo. Quem sabe ele seria uma reencarnação de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778)  reafirmando que o homem nasce livre e a civilização lhe coloca correntes. A civilização no caso era a supervisão da Residência médica, uma etiopatogenia insidiosa.

A captação das suas dúvidas fez me lembrar de uma fábula sobre as duas faces do ser humano tratada de modo esopiano (mais atraente quando algum animal presente) e cuja origem parece incerta: Há dentro de nós uma luta entre um lobo mau e um lobo bom. Quem vai ganhar? O lobo que iremos alimentar. Invoca a teoria que a domesticação de um animal feroz revela um componente amistoso até então submerso, que só precisa ser melhor alimentado. O nosso visitante relutava em se tornar um Homo Cachorrinho conforme ironizado pelo historiador holandês Rutger Bregman (nascido em 1988). Na conexão com o paciente, a intuição o alimentaria e o pescoço não aceitaria nenhuma coleira de medicina defensiva, estava convicto.APF1

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