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1168- Sem dúvida, temos dúvidas (Parte 7)

É sempre bom recordar, bioamigo, o truísmo que manifestações do ser humano são sempre atividades humanas, por isso, dedicar-me para persistir um militante em Bioética significa efetiva militância, no meu caso, a existência crítica e comprometida, especialmente na relacionada ao ecossistema da beira do leito.

Uma das comparações da Bioética mais representativa do sua utilidade é que funciona como uma lente de aumento. De fato, a aquisição de um senso em Bioética possibilita detalhar além da acuidade habitual, portanto, um atributo do ser/estar/ficar militante. Bioamigo, confesso que é reconfortante trabalhar influindo e sendo influenciado sob a bandeira da Bioética, uma interdependência determinante de continuada reciclagem pelas 25 combinações associadas ao Pentágono da Beira do leito.Pentágono

A militância em Bioética lida tanto com situações de aumento desproporcional da preocupação quanto de virar indevida despreocupação. Promover o equilíbrio, nem excesso nem indiferença, é essencial para que se organizem equacionamentos segundo conformidade entre abrangência e profundidade, decomposição e reordenação judiciosa, bem como a captação do recado da natureza que a junção de dois opostos como chuva e sol produz um arco-íris, cada cor a mais agrado de cada um. É gratificante contribuir para substituir o que chega como um temido sem saída por picadas abertas por ferramentas da Bioética. Quem sabe, gostar de lidar com estas prerrogativas até faça parte dos misteriosos pré-requisitos para a dedicação à Bioética.

A Bioética tem também pulos do gato. Conheci esta expressão sobre uma competência que faz a diferença lendo Monteiro Lobato (José Bento Renato, 1882-1948).  Um pulo do gato da Bioética é a coerência entre abrangência e profundidade. Mentalize, bioamigo, o T maiúsculo. Há uma estética, se a barra horizontal for exagerada, tenderá a um travessão, se a barra vertical for muito desenvolvida, tenderá a um I. Considere, então, bioamigo, o traço horizontal como abrangência e vertical como profundidade e a estética do T transforma-se num guia de equilíbrio frente a análise de conflitos da beira do leito.

Era uma segunda-feira que prometia e desde as 6h30 a Bioética me ocupava, ou, talvez melhor, eu me desocupava com ela. O ritmo do concluir/salvar/encaminhar as tarefas estava a contento, nenhum acúmulo à vista. Bem que precisava procurar um artigo sobre a história da ética médica publicado tem uns 20 anos numa das pastas do armário que sobraram desde que passei a priorizar o arquivo eletrônico, e rever exatamente sobre mais ou menos isso que a memória me lembrava: na década de 70, a revolução liberal chegou à medicina e os pacientes passaram a recusar uma relação do tipo pai e filho com os médicos e procuravam um relacionamento entre adultos.

Mas, os dedos tão íntimos do teclado, exercitando-se numa continuidade que era prazerosa em feedback com os resultados, me conduziam noutra direção e eu podia muito bem esperar até amanhã para resolver a pendência bibliográfica e dar continuidade ao meu artigo sobre pluralidade na beira do leito em função da aquisição do direito à autonomia pelo paciente. Três horas passaram rápido, exceto os cinco minutos ao telefone fixo tentando explicar que a ligação tinha caído direto num ramal – justo o meu- e que eu não tinha a mínima condição de transferir para que setor, que, aliás, não deu para entender.

Chovia, pelo menos cheguei ao hospital com chuva, mas agora não sei exatamente pois minha sala não tem janela. O que sei é que no sábado comemoraremos bodas de ouro, aliás, numa emocionante  coincidência, a minha nupcial ponte para o futuro tem os mesmos 50 anos de Bridge to the Future, o livro lançado em 1 de janeiro de 1971 que marcou o enlace de Van Rensselaer Potter com a Bioética.

Reunião marcada, após 72 horas dado o fim de semana, que não sei como a  ansiedade do jovem médico encarou, tempo suficiente para mentalizar qual seria o mais adequado ritual para se apresentar, mas que resultou insuficiente pelo pesado plantão e pelas dificuldades do já atrasado preparo do caso para a reunião da clínica, o até então nomeado como o doutor APF agendado para as 10 horas, chegou 15 minutos antes – sinal de interesse … e de bom-tom -, estava de jaleco com talhe impecável e nome bordado de maneira cursiva no bolso cheio de canetas – sinal de apuro ao se apresentar-  e ostentava um estetoscópio pendurado no pescoço – sinal de satisfação por ser médico. Um personagem à procura de um aconselhador, como em Pirandello (Luigi, 1867-1936), para dar vida ao seu próprio drama.

Dava para perceber ares de um “Eu” ainda sob influência de um forte dualismo certo e errado da formação maniqueista do código de valores que é apresentado ao ser humano, igualzinho ao que transparecia para mim dos professores do Colégio Pedro II. Ainda bem que a Bioética ajuda a calibrar flexibilizações sobre certo/errado ao mundo real da beira do leito. Por exemplo, frente a um não consentimento (pretensamente um erro na óptica do médico, um acerto na óptica do paciente) não se pode considerar equivocado o médico considerá-lo como ainda provisório e dispor-se a  insistir pela reversão ao consentimento que se enquadre no paternalismo brando que busca o preenchimento de lacunas por argumentos, isento de coerção e proibições.

O jovem médico não duvidava que estava com uma dúvida espinhosa. Na proporção que aplicava às reações à doença e à pessoa do paciente, percebia eclodir vários pontos cegos. Para o melhor domínio da visão dos cenários, buscava contar com uma objetiva de foco mais amplo. Alô Bioética!

Um dos nomes respeitados na Bioética brasileira é o do saudoso professor William Saad Hossne (1927-2016). Ele cunhou o termo bioeticar, e, como se sabe, o verbo mais do que o substantivo dá melhor dinâmica aos processos… e causam neologismos. Então, iríamos bioeticar na reunião com o jovem médico.

Com uma dose próxima da tóxica de expectativa por uma conversa produtiva – já adianto ao bioamigo que foi, bioeticamos muito-, o jovem médico estava decidido que a vontade de ser esclarecido só acabaria quando terminasse… o interesse dele. Como sei? Todos assim somos em circunstâncias análogas.

O jovem médico batera levemente à porta, como se faz habitualmente, entremeou-a, perscrutou o interior. Nada estranho, um prólogo habitual para intuitos cooperativos. Pelo meu desvio do olhar da tela do computador, sem muita fixação nele, e discreto aceno com a cabeça, aliás o que de mim ele podia ver pela posição da mesa, certificara-se que não errara de porta.

Seus olhos típicos de um pós-plantão noturno disseram estou aqui. A máscara anti-Covid-19 acentua a comunicação pelo olhar. Duração do olhar, abertura da pálpebra e brilho/apatia no olhar fazem dos olhos uma via de duas mãos, traz comunicação do nosso interior. A expressão popular está saindo faísca dos olhos é ilustrativa. Os olhos são tanto órgãos dos sentidos quanto de sentimentos.

Dera a mim mesmo o direito de terminar a frase que escrevia numa resposta a uma consulta ética interna- assim procedemos, se fosse meu chefe imediato interromperia na hora, com certeza. Após salvar, me dei conta ele já havia se sentado garantindo o acolhimento.

Claro, fechara a porta, delimitara o espaço para usufruto dele, nenhum risco de uma interrupção por uma curiosidade de fora. Porta de sala no hospital, além de servir para apor o nome é para privacidade, também.

É curioso como o tamanho das portas internas é padronizado, não está subordinado à metragem da sala, indicando que sua função independe dos objetivos funcionais do cômodo. A porta traz lições de natureza ética.

Comparado a outras salas do mesmo andar, a minha é pequena, o bastante para a mesa, o armário e algum lugar para acomodar alguns objetos dispensáveis se não fossem decorativos. E porque (quase)só penso como associar Bioética ao que me dedico, ultimamente, no hospital, percebo como a minha porta se sobressai na exiguidade do espaço e simboliza a intenção da Bioética principialista, abre-se para a beneficência, fecha-se para a maleficência e seu trinco respeita a autonomia e a equidade.APF1

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