A ascensão de Hipócrates a Pai da Medicina – epônimo pioneiro- determinou sua imortalidade. Após sua morte- só se torna imortal quem morre-, como não poderia deixar de acontecer pelo impacto e objetividade de sua obra, a continuidade temporal recheou de apreciações hagiográficas, iconofílicas e iconoclastas. Posiciono-me entre os admiradores do seu préstimo de polo inicial da difusão séria da medicina.
Tenho, com forte entusiasmo, Hipócrates como exemplo e inspiração sobre atitudes no ecossistema da beira do leito, desde a formatura – nosso convite tinha o nome do formando abaixo da imagem de Hipócrates. uma persistência de influência que pode ser enaltecida considerando a distância de 26 séculos, um intervalo habitualmente dissipador. Numa síntese, iluminação sobre qualquer suposição para jamais afastar-me do compromisso de utilizar meios científicos e obter resultados humanos, valer-se da tecnologia sem provocar prejuízo à dignidade humana.
Para o bioamigo que pode estar reagindo de modo mais cético, vale lembrar que Hipócrates advertiu sobre a necessidade de revisão constante dos conhecimentos pré-existentes – um precursor do conceito de evidências-, sobre o ser humano como objetivo primário da medicina, sobre o valor da conduta personalizada em função de circunstâncias individuais do paciente e sobre a conveniência de deixar escrito o recolhido do paciente e das pesquisas para ajuda à memória e fins pedagógicos. Creio que impressiona e justifica.
O bioamigo pode imaginar de onde esta universidade ambulante tirou tudo isto para provocar um big-bang da medicina? O estoicismo de Seneca é insuficiente e lamento minha carência de conhecimentos sobre filosofia para uma análise segundo as várias escolas. A psicologia é uma boa.
O psicólogo existencialista Rollo May (1909-1994) justificaria através da combinação de desejo e revolta, capacidade para se insurgir contra o status quo e para realizar de modo genuíno, o que necessita de vitalidade e saúde emocional. A militância em Bioética permite contato com este esbravejar ético e moral pois envolve-se com potencialidades de renascimentos, cada encontro visibiliza Prometeu no espelho.
Ensinar-lhes esta arte, se eles tiverem necessidade de aprendê-la, sem remuneração e compromisso escrito; fazer participar dos preceitos, das lições e de todo o resto do ensino, meus filhos, os de meu mestre e os discípulos inscritos segundo os regulamentos da profissão, é trecho do Juramento de Hipócrates – fator de preservação da imortalidade- que se encaixa na observação, talvez exagerada, mas admissível de William James (1842-1910), considerado pioneiro do ensino da psicologia nos Estados Unidos da América: As metamorfoses das sociedades de geração para geração são principalmente devidas direta ou indiretamente a atos e a exemplos de indivíduos com gênio receptivo ao momento e que se tornaram fermentos iniciadores de movimentos.
No ambiente universitário que frequento ininterruptamente há cerca de 60 anos, desde calouro fugindo do trote dos veteranos pelas ruas da Urca aos pés do Pão de Açúcar e seu bondinho que não servia para nos escondermos, pela rotina pedagógica que priorizei na pós-graduação continuada em ambiente de excelência, aprendi a valorizar o conceito que a boa educação médica movimenta-se por densa interdependência entre pontos e contrapontos, convergências e divergências, adições e contradições, intenções e acasos. Ilustrativo em Cardiologia, a nascença saudável obriga todos corações humanos a situarem-se nos mediastinos e a vivência os diferencia na doença pelos cuidados necessários.
Considerei sempre, graças a ensinamentos proporcionados pela boa convivência, que rigor e flexibilidade precisam coexistir no meio científico. Nunca aceitei o rígido, não dialógico e professoral Magister dixit e seu compadre e carente de provas Ipse dixit. A dupla mestre inquestionável/é exatamente isso resulta prejudicial às interações entre tradição e inovação a respeito da medicina, haja vista que ciência está sempre inacabada e correndo atrás de cenários mutantes. Bom exemplo é uma coisa, idolatria é outra. Haja vista que o conceito de clínica soberana persiste útil em tempos de imagem poderosa quando devidamente posicionada numa integração produtiva.
A Bioética da Beira do leito destaca como a postura de verdade absoluta torna-se restritiva à recepção crítica individualizada, entrava a seleção do que é para incorporar e do que é para rejeitar no ecossistema da beira do leito. Expandindo, adverte para o valor do olhar crítico sobre os representantes atuais das duas expressões latinas em vários setores da sociedade com bem mais alcance de abrangência e profundidade do que o de uma sala de aula, porque difundidos nas redes sociais de muitos seguidores e de fáceis likes.
A Bioética da Beira do leito estende, inclusive, este potencial de malefício para algumas facetas das diretrizes clínicas sob responsabilidade das sociedades de especialidades e terceirizadas para um comitê de especialistas e de cuja seleção de integrantes os associados não participam. A ideia que diretrizes clínicas não são algemas, mas sim bússolas- waze mais atual- torna-se importante para que a aplicação altamente pertinente das diretrizes clínicas afaste-se de qualquer analogia depreciativa com o ventríloquo e seu boneco. Faz pensar, quem deve controlar a voz de quem?