Há outro aspecto do humor, a contribuição para a melhor compreensão dos fatos humanos da conexão médico-paciente. Millôr (Milton Viola) Fernandes (1923-2012) era mestre em construir humor com um fundo de seriedade motivador de reflexão, inclusive com fundamentação alinhada à Bioética: O escoteiro ao ver o idoso apressado para pegar o ônibus, atiçou o cão e o idoso desesperado correu… e conseguiu pegar o ônibus. O escoteiro sentiu que praticara a boa ação do dia. Mas a decisão foi unilateral, sabe lá como ficou o idoso. Vem então a pergunta básica Foi bom para quem?
A Bioética da Beira do leito entende que a transdisciplinaridade é fundamental na beira do leito e uma de suas nutrições é a literatura. Há muito a captar da criação literária, das entrelinhas bem humoradas dos textos acerca de realidades. Reúnem-se em utilidades para ampliar possibilidades de sentidos no que se ouve, para conhecer modos até então nunca contatados de pensamento, para desnudar relevâncias e para motivar a construção de falas.
O efeito pedagógico da literatura do humor para a comunicação na beira do leito pode ser ilustrado nos exemplos abaixo, adaptados do livro Humor Judaicos, do Éden ao Divã, 2ª edição, editora Shalom, São Paulo.
I
– Vá ao mercado e compre o melhor.
– Trouxe uma língua.
-Vá ao mercado e traga o pior.
– Trouxe uma língua. Explico, a boa língua é o que existe de melhor no mundo, a má língua é a o que existe de pior no mundo.
Aplicação: Mesmo método é beneficente e maleficente.
II
Uma pedra caiu sobre um cântaro? Pobre do cântaro!
Um cântaro caiu sobre uma pedra? Pobre do cântaro!
Aplicação: O maior impacto da má decisão, quer orientada pelo médico, quer por desejo do paciente, é sempre sobre o paciente.
III
Quem sopra a espuma de seu copo não tem sede.
Aplicação: O paciente necessitado se apressa em consentir.
IV
Um homem alto com grande barba estava de pé num trem lotado.
Entra um baixinho que não alcança a barra superior e, então, segura na barba do homem alto.
– Solte a minha barba!
– Porque? Você já vai descer?
Aplicação: O paciente é exigente do médico além do disponível.
V
– Estou aflito. Meu filho tem dezesseis anos e quero mandá-lo ao exterior.
Se digo que tem quinze anos não deixam viajar sozinho.
Se digo que tem dezessete anos, não deixam por causa do serviço militar.
– E porque não diz a verdade?
– Excelente conselho, obrigado!
Aplicação: Anamnese precisa ser a mais sincera.
VI
Ambos desejavam comprar o jazigo ao lado do de um grande homem.
Degenerou em briga.
O sábio interveio: – Terá direito quem morrer primeiro.
A paz voltou.
Aplicação: Muitos conflitos da beira do leito resolvem-se pela argumentação convincente.
VII
Cada um dos irmãos, pobres, recebia uma ajuda de custos de uma pessoa rica.
Um irmão morreu.
O sobrevivente ao receber a sua parte reclamou que deveria ser o dobro.
– Mas seu irmão morreu!
– Quem é o herdeiro dele? Eu ou o senhor?
Aplicação: São infinitas as formas de exigências na beira do leito
VIII
O gato gosta de peixe, mas não de molhar as patas.
Aplicação: Receber o útil requer envolvimento com o agradável e o desagradável do método.
IX
Um alfaiate foi ao Vaticano.
– Você viu o Papa?
– Sim, vi de perto.
– O que achou?
– Acho que ele veste 46.
Aplicação: Médicos estão condicionados a enxergar o paciente como local de doença.
X
– Esposa, preste atenção no meu testamento. A loja deixo para o nosso filho mais velho.
– Não, ele não tem jeito para negócios, deixe para um dos gêmeos.
-Está bem, a casa de campo deixo para nossa filha.
– Não, para que é ela precisa de uma casa de campo? Deixa para o outro gêmeo.
– Está bem, deixo o carro para o nosso caçula.
– Não, ele já tem carro.
– Esposa, quem é que está morrendo, eu ou você?
Aplicação: Pelo direito ao princípio da autonomia, o paciente tem direito a ser a palavra final na tomada de decisão.
XI
– Filho, honestidade e sabedoria são muito importantes.
– Me explica, pai.
-Se você promete entregar a mercadoria num determinado dia, deve honrar a palavra.
– Sim, entendi, mas e quanto à sabedoria?
– Sabedoria, filho, significa que não se deve prometer.
Aplicação: A comunicação do médico para o paciente deve ser treinada em função de certas premissas dadas pela experiência.
XII
Frequentava há muito o mesmo restaurante. Um dia:
– Garçom, experimente a sopa!
– Não há necessidade, já troco.
– Garçom, experimente a sopa!
– Está bem, se o senhor insiste… Mas onde está colher?
– Ah Hah!
Aplicação: Ouça o paciente sem pressupostos, disponha-se a entender seus motivos.
XIII
A mãe empurra o carrinho do bebê pela rua. Alguém se aproxima:
– Que lindo!
– Isso não é nada, você deveria ver as fotos dele.
Aplicação: Textos não devem substituir a apreensão direta do quadro clínico. O momento clínico passa e o registro no prontuário é para sempre.
XIV
O vizinho pede emprestado uma corda.
– Sinto muito, preciso dela para secar farinha.
– Vai secar a farinha com uma corda?
– Não, mas quando não se deseja emprestar, qualquer desculpa serve.
Aplicação: Não dê uma resposta superficial ao paciente apenas para encerrar o assunto.
XV
O orador chama o circulante:
– Vá acordar aquele ali que dormiu.
– Eu não, o senhor o adormeceu, vá o senhor mesmo.
Aplicação: A responsabilidade do médico é individual.
XVI
-Eu nunca estive lá, mas desejo escrever um livro sobre o país.
– Quanto tempo vai ficar por lá?
– Três dias.
– E qual será o título do livro?
– Lá, ontem, hoje e amanhã.
Aplicação: Há vários modos de interpretar mesma situação para emitir um juízo.
XVII
-Profissão do pai?
-Ele já morreu.
-Sim, mas o que ele fazia?
-Estava doente dos pulmões.
-Estou perguntando como ele vivia?
-Tossindo sem parar.
-Mas disto não se pode viver.
-Pois é, eu não lhe disse que ele morreu.
Aplicação: O profissional da saúde precisa reajustar suas perguntas na anamnese quando percebe que as respostas não esclarecem sobre o que deseja saber.
XVIII
-Porque está pedindo desconto se não tem a intenção de pagar?
-Para reduzir o prejuízo dele.
Aplicação: O profissional da saúde não deve justificar que o que não pretende fazer do que deveria é para o bem do paciente.
XIX
-Doutor, falo sozinho, ultimamente.
-Muitas pessoas fazem isso.
-Mas o senhor não sabe como eu sou chato!
Aplicação: Cada paciente enxerga seus males ao seu modo.
XX
-O que é que Eva fazia quando Adão voltava tarde?
-Contava suas costelas.
Aplicação; Apenas humor, a impressão final é fundamental numa leitura. Concorda bioamigo?