Bioamigo, um anjo bom e um anjo mau estão neste momento sussurrando em seus ouvidos. Sim, bioamigo, é impossível que não estejam, mesmo se você estiver de folga, pois há muita chance de você estar preocupado com algum paciente.
Bioamigo, você não pode ser/estar/ficar um médico prudente se não tiver os dois anjos sussurrando acerca de incertezas, acasos e riscos. Um novato poderia pensar, sigo o anjo bom e faço o contrário do sugerido pelo anjo mau e me porto eticamente.
Bem pensado, mas temos que alertá-lo que não é bem assim, o bioamigo há de concordar. É frequente que ambas adjetivações não sigam consensos sobre as bases éticas, morais ou legais dos aconselhamentos.
A dificuldade de cravar uma interpretação de bom ou de mau inclui ambiguidades a respeito de critérios de certificação de quem é quem, assegurar-se que o que vem é bom ou é mau para a circunstância, considerar o entendimento indiscutível, infalível e perceber se o modo próprio de enxergar superpõe-se ou não a conceitos e disposições vigentes.
Na verdade, o que se decide como o melhor a fazer é colocado na conta do anjo bom e o que se rejeita fazer atribuímos ao anjo mau, ou seja, a adjetivação fica a serviço de nossos fins. Assim, nossas triagens sobre os pensamentos autóctones ou motivados desde o exterior são direcionados para a aprovação como sussurros de um anjo bom e para a rejeição como sussurros de um anjo mau. Ajuda a aliviar a tensão.
O ser humano não pode pensar sem o uso de palavras, o médico – e o profissional da saúde em geral-, então, nem pensar em pensar sem as palavras adequadas. Palavras carregam muita indeterminação e portanto o pensamento pode soar vago, ou seja, cada um pode calibrar a sua maneira dentro de uma escala entre dubitável e indubitável. Apenas para ilustrar, é adágio popular que quem ama o feio, bonito lhe parece.
Será que o paciente que vem a desejar o que é anjo mau para o médico, anjo bom lhe parece? Será que pacientes – seres humanos plurais- não podem desejar o jeito de ser de um anjo profissionalmente admitido como mau? Sabemos que sim, não é mesmo bioamigo. A alta a pedido ilustra. A sabedoria popular aponta para as diferenças de interpretação sobre copo meio cheio e copo meio vazio. A esperteza do vendedor trocou o termo semi-usado mais honesto por semi-novo mais convincente. Maneiras de reduzir as indeterminações por expressões que adquirem um sentido próprio, a alta a pedido é um direito do paciente, o copo meio cheio é suficiente, o copo meio vazio não prejudica, o carro semi-novo é praticamente igual ao novo independente da quilometragem.
Recentemente, surgiu na beira do leito um anjo etiquetado como mau, na verdade reetiquetado. Seu nome? Paternalismo, o velho paternalismo de séculos de prática. Novos tempos, novos direitos, novos deveres. Contrapunha-se ao anjo bom da autonomia numa recomendação heteronômica ética/moral/legal. Mas como não existe governo sem oposição, como experiências desbancam certos pensamentos idealizados, como o reducionismos prejudicam lidar com toda e qualquer circunstância, logo o mundo real da beira do leito percebeu que o conceito sobre paternalismo como mau anjo conselheiro não deveria ser pétreo, que cabe um tipo de paternalismo reprovável e cabe um tipo de paternalismo admissível. A plausibilidade de um comportamento paternalista em cenários da beira do leito provocou a adjetivação de paternalismo brando, assim distinguindo-o do paternalismo ligado à coerção e à proibição e que resultaram descarregadas como um inadmissível paternalismo forte.