Apresentamos quatro acasos da beira do leito com enfoque principal na cardiologia.
Acaso 1
ABC, homem de 47 anos, aposentado por invalidez, apresenta febre, atingindo picos de 38,50C. Ele recém-completou seis semanas de antibioticoterapia para Staphylococcus aureus e há cinco semanas trocou uma prótese valvar de cinco anos de uso em razão de endocardite infecciosa. Uma reoperação imediata é fortemente cogitada pela hipótese de infecção em atividade na nova prótese. A imagem ecocardiográfica não esclarece. Pela rotina do Serviço, aguarda-se a pesquisa de foco infeccioso extracardíaco, diagnóstico diferencial que, se descartado, autorizaria uma pronta reintervenção cardíaca. Radiografia panorâmica dos dentes identifica duas imagens altamente sugestivas de foco infeccioso. A reoperação, que já havia sido comunicada ao paciente como iminente e que contara com apoio da equipe multiprofissional, é adiada. Paciente séptico e médico céptico anseiam pela constatação in loco do dentista. A infecção é confirmada e eliminada em duas sessões odontológicas. O termômetro clínico passa a ser a preciosa tecnologia necessária para o próximo passo: alta hospitalar ou centro cirúrgico. A sucessão ininterrupta de registros aquém de 36,60 C após a eliminação do foco dentário, aliada à melhora clínica e à regressão de valores laboratoriais, convenceu a equipe sobre a desnecessidade da reoperação cardíaca.
A boa evolução persistiu e 180 dias após a alta hospitalar, ABC é considerado clinicamente curado. Nesse período de tempo, O Serviço cuidou de mais dois casos semelhantes de hipertemia sequente ao término do tratamento clinico-cirúrgico de endocardite em prótese. Ambos não apresentavam foco infeccioso extracardíaco e os achados da reoperação imediata confirmaram a persistência da atividade infecciosa no coração.
Esse acaso da beira do leito ilustra a beneficência centrada na informação desde o paciente, e não numa organização mental simplificadora com base na maior probabilidade. Ele representa a unicidade que fala mais alto do que a estatística.
Acaso 2
O casal KDF e BBF, ambos com 29 anos de idade, após três anos de casados, procuram aconselhamento familiar sobre o risco de gestação em portadora de cardiopatia. Eles foram informados de que, de fato, haveria chance de ocorrer descompensação cardíaca durante o ciclo gravidopuerperal. O marido indagou sobre a conveniência de uma correção cirúrgica prévia à gestação e recebeu, com evidente surpresa, a resposta de que não se recomendava o tratamento cirúrgico da insuficiência mitral por prolapso da valva mitral pela intenção de engravidar, em paciente em classe funcional I. O médico notou a insatisfação entre o casal ao final da consulta.
A situação evoluiu para conflito quando o casal, 15 dias depois, retornou e relatou que uma segunda opinião deu a entender que eles tinham o direito de exigir a operação e que o médico deveria ser responsabilizado por imprudência, caso houvesse intercorrência gestacional.
Percebia-se que o marido estava mais exigente da intervenção do que a esposa, que confiava no seu cardiologista de há muitos anos, desde que os seus pais, muito assustados, a haviam levado para uma primeira consulta por causa de sopro cardíaco ouvido pelo médico do esporte. A confiança duelava com a opinião contrária do marido.
A relação médico-paciente (casal) ficou tensa, o médico sabia como ver aquele momento, mas não podia entrever o futuro da gestação, que, de certa forma, estava sendo exigido. Até tentou algumas explicações sobre risco-benefício, compromissos com eventual prótese, anticoagulação etc., no entanto sem êxito. O objetivo de aconselhamento não prosperava.
O médico fez prevalecer a sua autonomia. Tendo por base a sua segurança profissional, domínio da ética e vivência em Bioética, não se deixou convencer pela recomendação que lhe foi transmitida como tendo sido uma segunda opinião. Ele sabia o quanto uma segunda opinião é valorizada pelo paciente, especialmente se mais a gosto do pretendido, mas estava seguro da sua primeira opinião.
No decorrer dos seguintes dois meses, o casal se desentendeu; o marido insistia que não iria “ter um filho com problemas”, interligando indevidamente a situação cardíaca da esposa com a formação embrionária e, assim, revelando sua principal preocupação. A separação do casal aconteceu.
Dez meses após, KDF retornou ao seu cardiologista. Ela estava grávida e o futuro marido – um compromisso que foi firmado após a sua concordância com a posição dela acerca de eventual gestação- manifestava uma postura otimista com o desenvolver da gestação. Em clima de superposição total de intuitos, resultou combinada a estratégia de acompanhamento clínico-cardiológico pré-natal.
No sexto mês da gravidez gemelar, KDF apresentou edema agudo de pulmão. A correção cirúrgica da valvopatia mitral foi então proposta e logo efetuada, pós-operatório sem intercorrências materno-fetais. Mãe e filhos encontram-se saudáveis, três meses após o parto cesáreo e puerpério normal.
Por mais que subgrupos constituam casuísticas de pesquisa em busca de respostas mais exatas, comportamentos segundo a chamada natureza humana prevalecerão sobre estatísticas, em muitos acasos da beira do leito. A Bioética clínica afigura-se, nessas circunstâncias de incertezas, como apoio de utilidade, eficácia e precaução no entrever da medicina como ciência e como disciplina aplicada.
Cada entendimento de beneficência, cada entendimento de não-maleficência ao seu tempo. Mesma mulher, distintos maridos fizeram a diferença dos atendimentos. Mesma valvopatia, distintos momentos fizeram a diferença das condutas. Assim caminham os acontecimentos com respeito à ética e atenção aos preceitos da Bioética.
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