PUBLICAÇÕES DESDE 2014

1094- O médico especialista em formação. Diretriz e liberdade.

O médico especialista em formação, residente na especialidade, por exemplo, orienta-se por uma biblioteca de validades da literatura médica hierarquizadas por sociedades de especialidade conhecidas como diretrizes clínicas.

Elas representam maquetes da construção clínica à beira do leito, disponibilizadas por meio da tecnologia da informação qual franquias para serem reprodutíveis em cada local. Diretrizes clínicas pretendem reduzir vieses enigmáticos e influenciam atitudes da geração de médicos.  É importante preservar o juízo critico na aplicação e na observação dos resultados.  

Hannah Arendt (1906-1975) nos legou que somos livres por consciência e princípios morais, portanto responsáveis, mas nos orientamos em conformidade com o princípio da causalidade. O surgimento de um primeiro fato condiciona um segundo e assim por diante, acontecimento bastante familiar ao médico na beira do leito e que motiva prover previsibilidades e evitações pré-intervenções e revisões pós-intervenções.

Em poucas décadas, diretrizes clínicas progrediram de documentos tolerados para desejadas conveniências de sistematização em faça, não faça, provavelmente é para fazer, provavelmente não é para fazer.

Sendo faça, não faça um guia de “verdades” e não uma norma de “certezas”, a aplicação não pode prescindir da lucidez clínica exigente de liberdade e responsabilidade para evitar desfigurações à forma humana das recomendações científicas.

Ponderar sobre um decálogo afeito à Bioética é útil para o especialista em formação. Trata-se de um livre pensar sobre maximizar vantagens das diretrizes clínicas nas tomadas de decisão e no seu processo educacional, e minimizar deficiências no trato do paciente (uno) em seu (a)caso e lacunas da literatura (infinita).

  1. Os bons princípios e os reconhecidos benefícios de diretrizes clínicas justificam a expectativa crescente por suas disponibilidades, mas não asseguram faça, não faça a todo paciente. Elas não constituem nem décimo primeiro mandamento de fé, nem chave mestra da beira do leito. Rigidez de pressupostos ou indícios de predador do juízo clínico crítico não costumam ser bem-vindos à essência do médico que valoriza o espaço da experiência.
  2.  Como “agentes translacionais”, as sociedades de especialidade grudam etiquetas de classes e níveis com cola científico-ético-legal num percentual ainda restrito das possíveis questões das especialidades e observa-se minoria do nível A de precisão científica.
  3. Cada construção orientadora presente em diretrizes clínicas pode aparentar uníssona em relação aos membros do comitê editor em nome da sociedade de especialidade, mas o consenso sobre melhor ou não-melhor evidência pode ser apenas parcial numa decisão por votação.
  4. Não-melhores evidências, persistem, obviamente, boa publicação – e citação -, passíveis de uma segunda opinião e de jamais serem rotuladas como inevidência. Na ciência da incerteza e arte da probabilidade, um método inferiorizado pelo p <0,001 pode ter seu sucesso no mundo real da beira do leito.
  5. No trial-guideline-education process como cunhado por Wallace Bruce Fye (nascido em 1946), o especialista em formação precisa cuidar bem do significado de faça porque prevê melhor prognóstico e não faça porque é inútil e ineficaz das diretrizes clínicas para evitar o paradoxo de sentir certo desamparo pelas ausências de encaixes de recomendação nos (a)casos clínicos que atende.
  6. Há risco do “fazer correto” ao paciente desprovido dos fundamentos, reduzir o ser médico a um ato algorítmico de fazer ou não fazer. Ademais, para não demonstrar desconhecimento ou inércia, há chance de se escorregar para a imprudência de um uso desajustado àquele paciente-uno.
  7. Vantagens de praticidade, agilidade e uniformidade no uso de diretrizes clínicas e pouco tempo disponível para o caso clínico podem desestimular o médico especialista em formação ao detalhamento dos artigos referidos nas publicações. Apaga-se a vontade da própria leitura crítica sobre o comentado ou referido já iluminado pelo comitê da sociedade de especialidade, configurando uma procuração tácita.
  8. Exclusões de situações pela concepção pragmática, matemática e ética dos projetos de pesquisa indicam que não basta ligar o GPS-diretriz clínica e seguir de modo acrítico a seleção de classes e níveis. É preciso liberdade para ajustar a diretriz-satélite da sociedade de especialidade aos sinais captados do paciente-uno.
  9. O especialista em formação escuta dois tons de aprendizado do faça, não faça, envolvendo diretrizes clínicas: o tom-pater da centralização da publicação e o tom-frater à beira do leito.  O tom-pater é a voz educativo-ético-legal que ecoa das fronteiras da excelência tecnocientífica com uma sensação de não-liberdade teórica no trato da ciência-diretriz. O tom-pater desde líderes de opinião com ou sem conflitos de interesses e um forte efeito de grupo podem criar atmosfera de “política de governo” e de pouca atração para demais membros expressarem-se. Já o compromisso com o tom-frater na beira do leito ensina as nuances para específicas  condutas e que necessitam da liberdade prática. Cuidar do equilíbrio entre o tom-pater e o tom-frater é recomendação ao especialista brasileiro em formação, com inspiração na Bioética.
  10. Ciência com humanização destaca-se como fundamento para o especialista brasileiro em formação comprometer-se a chegar à beira do leito com as mãos liberadas de uma diretriz-algema. Com elas livres, ele pode empunhar a diretriz-bússola, ao mesmo tempo que pode apontar rumos por visão direta.  O especialista brasileiro em formação segue, assim, fiel à soberania da expertise clínica e  propenso à harmonia com a diretriz clínica.
Adaptado de Grinberg M- O cardiologista brasileiro em formação, Diretriz e liberdade.  Arq. Bras. Cardiol. 92 (1):e4-e5, 2009. 

 

COMPARTILHE JÁ

Compartilhar no Facebook
Compartilhar no Twitter
Compartilhar no LinkedIn
Compartilhar no Telegram
Compartilhar no WhatsApp
Compartilhar no E-mail

COMENTÁRIOS

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

POSTS SIMILARES