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1052- Convicção e responsabilidade (Parte 2)

Bioamigo, você já deve ter presenciado alguém tentar convencer outra pessoa- talvez você mesmo- a usar um produto embalando-o e rotulando-o como natural. Embora possa haver um autêntico interesse em ajudar, é um termo de impulso positivo sobre a memória afetiva a respeito da natureza, convocando-a como um meio para servir ao domínio da credibilidade, uma ponte para uma sugestão amigável, um basta para mais esclarecimentos com forte poder de impacto na cultura vigente.  Afinal, a natureza não faz nada em vão (Aristóteles, 384 ac-322 ac) e portanto etiquetar como natural é empático e  admite uma ética da intenção.

De fato, o termo eufônico de três sílabas admite o objetivo de garantir que é uso isento de males, uma pedagogia que intenciona antepor uma cortina perante qualquer dúvida sobre adesão ao benefício cogitado e motivando ao pensamento porque não? uma predisposição à entrega heteronômica, pois, no fim, o receptor projeta as próprias perspectivas. Comunicação e comunidade.

Desta maneira, no contínuo jogo entre o que existe e o que você e eu sabemos, natural adquiriu uma semântica própria alinhada à aceitação  acrítica. Linguagem1

No século XVII, o filósofo empirista John Locke (1632-1704) entendia que armadilhas da linguagem emitida, como aquela que pretende representar uma verdade de modo puramente verbal, poderiam desestimular o pensamento crítico do receptor sobre o significado. Assim, tornou-se sabido que existem conotações retóricas que desviam o pensamento da essência na direção de ilações e conotações semânticas mais comprometidas com significados habituais da língua.

A Bioética da Beira do leito chama a atenção que a beira do leito não está imune a este comportamento verbal que provoca uma correspondência rasa na mente do paciente, ou seja, menos compreendidos e mais subentendidos. Não que haja exigência de uma aula detalhada sobre fisiopatologia ou terapêutica, mas o que parece obrigatório é evitar concentrar o que precisa ser explicado em tão somente uma ou duas palavras-chave, que falam por si, pior se tão somente meras palavras, vazias de sentido.

Terminologia refere-se a vocábulos próprios de uma ciência, arte ou ofício cuja implantação é atribuída a Eugen Wüster (1898-1977). Nos seus primórdios, a Terminologia pretendia uma linguagem tecnocientífica livre de confusão com imperfeições da língua, com padronização que pudesse atender às necessidades de uma comunicação profissional qualificada. Atualmente evoluiu para um contexto “in vivo” que de certa forma favorece a revitalização da comunicação. Mas a chamada Lei do Uso é criticada por puristas da língua, que advertem sobre as imperfeições de colher um hemograma (colher material para), raio-x do paciente (radiografia) e evoluir o paciente (anotar a evolução).

O rigor na linguagem científica não deve tirar a liberdade de escolha de palavras constantes no vocabulário – ou até mesmo importadas de outros idiomas-, mas é importante preocupar-se com a qualidade da comunicação, respeitar a tradição, acatar simbolismos, não firmar um direito de uso tão somente pela idade de um equívoco de linguagem.

Pois é, bioamigo, a Bioética da Beira do leito neste campo da Terminologia na beira do leito interessa-se em analisar porque a emissão de certas palavras legitima uma aplicação na beira do leito dando a entender que cabe uma admissibilidade tecnocientífica, mesmo quando a pretensão não se acompanha do necessário aprofundamento crítico. A atual pandemia reforçou pois a sociedade foi instada a elevar o interesse público por termos das ciências da saúde, desde específicos como espícula do vírus até de uso comum como ventilador.

O efeito de um termo-síntese que adquire sentido próprio e de certa forma dispensa seu conteúdo integral admite o paradoxo que não há nada mais prático do que uma boa teoria. Exemplo marcante é o termo off-label para justificar uma atualização de uso de um fármaco fora da bula.

O termo off-label  motiva  um mergulho na filosofia de Giles Deleuze (1925-1995), especificamente o que chamou de paradoxo da contemporaneidade do passado com o presente, em que o passado representa um fundamento e o presente e o futuro são suas dimensões. Ante a nova situação presente, antecipa-se um futuro sobre uma plataforma preexistente.

Denota um acréscimo como rótulo para sair do anonimato de indicação e entrar na intimidade da conexão médico-paciente, embora com lacunas de farmacovigilância. O termo off-label representa uma superficialidade que se torna imperativo de linguagem para facilitar a recepção consentida para um transplante de prescrição.off11off2

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