A Bioética da Beira do leito enfatiza a junção de dois É vedado, o primeiro ao paciente Testemunha de Jeová em função de sua crença que não admite exceções a não receber transfusão de sangue e o segundo ao médico de desrespeitar o não consentimento do paciente, mas que admite a exceção quando ocorrer iminente risco de morte evitável, o que faz surgir um É permitido.
O paciente Testemunha de Jeová não se interessa em pertencer à indicação beneficiadora do prognóstico e o médico não se apropria exatamente de uma liberdade de atuação específica. A beira do leito resta carente de uma segurança profissional face a aspectos de consciência contrapostos.
Verifica-se, pois, o encontro da verdade pelo conhecimento empírico com o valor pelo desejo de um indivíduo capaz provocando limitações a uma conformidade de posicionamento. O tão preciso poder disciplinar fica reduzido para influenciar positivamente o prognóstico, o bem-estar, a sobrevida, vale dizer, perante situações de risco iminente de morte evitável, fica manietado para fazer viver e impedir deixar morrer.
Depreende-se que um jogo de poder resulta incidente na beira do leito para cumprimento de vedações ética (com uma fresta de porta aberta) e religiosa (com porta dogmática). A Bioética da Beira do leito compartilha do conceito que poder é sempre interpessoal, pois se apenas pessoal seria melhor designado como força. Em decorrência, dá extrema relevância ao poder da tecnociência que possibilita fazer o bem perante os males das doenças. É uma obviedade, mas que ao mesmo tempo, não pode deixar de valorizar o caráter humano da aplicação, o poder da pessoa como ser humano de constituição autônoma.
O risco de um poder indevido na beira do leito é a produção de imprecisões de compreensão e de oposições leigas à visão profissional sobre o bem. Por isso, a Bioética da Beira do leito entende que um poder que chamaríamos de integrador médico-paciente facilita movimentações em busca de decisões com maior chance de respeito à tríade legitimidade, liberdade e dignidade.
Neste contexto, o paternalismo brando exerce um poder nutrício com uma justa intenção de proporcionar bem-estar ao paciente, mas que passa a ser componente de uma intenção de poder integrador pelo fato de precisar, ao final, acatar a voz ativa do paciente.
Uma retrospectiva histórica sobre cenários da beira do leito faz perceber que há poucas décadas a voz ativa do paciente era quase nula na beira do leito. O biopoder na beira do leito – uma denominação por livre expansão da proposição de Michel Foucault (1926-1984) e que refere-se a um poder que incide sobre aspectos intrínsecos da vida e suas relações com o saber-poder- era exercido pela palavra do médico que sabia das coisas e por isso podia mandar, e, assim, quando procurado já havia a intenção da obediência pelo paciente.
A voz do paciente contra o médico era fundamentalmente um solilóquio e que, habitualmente, acompanhava-se de um desaparecimento na frente do médico. Recordo-me que na década de 70 do século XX, o paciente que se recusasse a se submeter a uma intervenção perfeitamente indicada arriscava-se a perder a matrícula no hospital de ensino.
Ao final do século XX, o direito ao princípio da autonomia deu ao paciente poder para exercer um não consentimento presencial à recomendação médica. Tudo evoluiu sob o entendimento de largamente válido, com uma exceção, a situação de emergência sob o entendimento de salvo em situação de iminente risco de morte evitável. Um grande passo, sem dúvida, mas com a restrição perfeitamente justificável pela delicadeza do tema morte evitável.