Há muito simbolismo associado ao sangue na história da humanidade. Na mitologia grega, o sangue retirado do lado direito de uma Górgona era salutar e capaz de trazer mortos de volta à vida e o sangue colhido a partir do lado esquerdo era veneno fatal. Por analogia, uma transfusão de sangue atual beneficia a vida e exige segurança contra transmissão de doenças e eventual efeito de incompatibilidade ABO (Karl Landsteiner, 1868-1943)/Rh (Karl Landsteiner e Alexander Solomon Wiener, 1907-1976).
A transfusão de sangue homólogo é método terapêutico que se inclui numa relação dos mais utilizados na beneficência perante risco iminente de morte evitável. Constitui uma das mais ilustrativas legitimidades terapêuticas pelo benefício que proporciona no choque hemorrágico espontâneo ou associado a uma intercorrência de intervenção diagnóstica ou terapêutica.
A história da transfusão de sangue é bastante rica e tem seu ponto alto na Espanha na década de 30 do século XX com a criação do primeiro Banco de Sangue vencidos obstáculos de incompatibilidade e conservação do sangue coletado. Desde então, associa-se à beneficência – fortemente comprovada durante a Segunda Grande Guerra Mundial- e à maleficência- possibilidade de transmissão de doenças/incompatibilidades.
Mais recentemente, critérios mais rígidos passaram a sustentar as indicações de transfusão de sangue, assim reduzindo riscos desnecessários (melhor relação benefício/malefício) e dando mais racionalidade ao uso dos estoques.
Eficácia e segurança transfusionais adquiriram excelentes níveis de confiança. No Brasil, a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, bem como a proibição à comercialização constam da Constituição Federal de 1988 e é objeto da lei 10.205, de 21 de março de 2001, referente à política nacional de sangue, que inclui a garantia ao acesso de todos os brasileiros ao sangue terapêutico com qualidade e em quantidade suficiente. Um Banco para todos! O valor da solidariedade!
No vasto universo terapêutico disponível para lidar com infinitas composições clínicas, observa-se um índice expressivo de consentimento de pacientes à recomendação médica da necessidade de transfusão de sangue fundamentada nos critérios universalmente estabelecidos. Ademais, a adesão do paciente à reserva de sangue -coleta de amostra de sangue para tipagem- é item de segurança em atos operatórios, vale dizer, uma atitude de prudência. Razão indiscutível para os recorrentes esforços de conscientizar a sociedade sobre o valor da doação de sangue.
Há uma conjuntura, todavia, que provoca forte impacto na organização desenvolvida para sustentar a transfusão de sangue como método terapêutico coerente com beneficência/não maleficência e influente no prognóstico. Associa-se à espiritualidade, sabendo-se que crenças possuem suas rotas prescritivas objetivando um destino mais elevado e que provocam a manifestação de valores autênticos por parte do paciente no decorrer do processo de tomada de decisão.
É situação singular porque fica à margem de uma escolha de Sim ou Não influenciável pelo que o médico informa ao paciente sobre consequências da aceitação ou rejeição da recomendação, ou seja, descola-se de um ato de ponderação selecionadora pelo paciente.
Ademais, dispensa tempo para refletir, como habitualmente ocorre para conscientização de causas e efeitos de métodos na beira do leito. Representa uma faceta especial da linha de pensamento que afirma que o médico não deve realizar uma escolha no lugar do paciente e que adverte que uma delegação da decisão de um ser humano para outro ser humano deve ser nutrida pelo compartilhamento de informações e não exatamente representar um decidir compartilhado, porque é o paciente que sabe da sua vida. Remete a Immanuel Kant (1724-1804): tratar as pessoas como fins em si mesmas e não como simples meios.