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HM16-Uma visão dos efeitos da tecnologia sobre o profissionalismo em Medicina

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Rip Van Wickle no seu sono de 20 anos
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Eletrocardiógrafo de primeira geração Paciente com os braços e a perna esquerda imersas em salina

 

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O conhecimento de fatos históricos é pedagógico.  Cícero (106ac-43ac) entendia que a história é a testemunha que atesta a passagem do tempo, ilumina a realidade, vitaliza a memória, serve de guia para o cotidiano e revela os vai-e-véns da antiguidade.

A história da eletrocardiografia – um pioneiro do envolvimento da tecnologia  com a Medicina-  permite conhecer certos aspectos centrais  e periféricos  do desenvolvimento da prática médica contemporânea com forte sustentação no que  o filósofo Mario Augusto Bunge (nascido em 1919) define: “… a aplicação de conhecimentos científicos para a resolução de problemas, ou seja tecnologia para controlar, transformar ou criar coisas, processos naturais ou sociais…”.

No campo da Medicina é a chamada alta tecnologia que tem criado uma verdadeira revolução de paradigmas de diagnóstico de doenças. Quantos médicos saberiam aplicar hoje as variações de métodos de exame físico para o reconhecimento de muitas doenças e situações clínicas que eu aprendi do professor de Propedêutica no terceiro da Faculdade há 50 anos? O baixíssimo número revela o desuso pela substituição por outras tecnologias que ganharam o crédito da superioridade no reconhecimento, com ênfase na imagem.

Relaciono ao biomigo, 10 fatos relevantes do ponto de vista histórico:

1-      Tecnologia é necessária- A invenção do eletrocardiógrafo pelo médico holandês Willem Einthoven (1860-1927), divulgada pela primeira vez em 1901 como “Um novo galvanômetro”, semeou o entusiasmo pela tecnologia – clássica e inovadora- em Medicina.  Além do estetoscópio, do esfigmomanômetro, do termômetro, a relação médico-paciente  da transição de século passou a conviver com máquinas de produzir chapa do pulmão e traçado eletrocardiográfico. Neste novo milênio que vivemos, a colheita tem sido cada vez mais na forma de complexidade de alto custo, válida para a mais eficiente qualificação dos cuidados com a saúde.

2-      Tecnologia muda conceitos com rapidez– Rip Van Winkle é um interessante personagem do livro homônimo escrito por Washinton Irving (1783- 1859) que dormiu por 20 anos, “congelou no tempo” e quando acordou encontrou um mundo totalmente  diferente do que conhecia. Neste contexto de grande mudança, o médico canadense Lewellys Franklin  Barker (1867-1943) que clinicou na Johns Hopkins University escreveu a respeito do desenvolvimento da ciência do diagnóstico na passagem do século XIX para o século XX: “…o médico que dormiu em 1890 e acordou em 1917 sentiu-se um desorientado Rip Van Winke acerca de métodos diagnósticos, verificando quão antiquado estava o seu conhecimento sobre  propedêutica…”.

3-      Tecnologia representa diversificação -O referido médico na pele de um Rip Van Winkle perdera no sono prolongado a inovação não somente da eletrocardiografia,  também da radiologia em 1895 (Wilhelm Conrad Röntgen, 1845-1923) e de exames sorológicos como a reação de fixação de complemento para o diagnóstico da então prevalente sífilis em 1906 (August Paul von Wassermann, 1866- 1925). Para dar um toque patriótico, a nota preliminar sobre a reação de fixação de complemento de Machado (Astrogildo, 1885-1945)-Guerreiro (Cezar, 1885-1949) para diagnóstico da doença de Chagas data de 1913.

4-      Tecnologia beneficia-se de uma padronização prática desde o início-A sistematização da oscilação da agulha inscritora realizada por Einthoven- a deflecção de 1 mm  corresponde  a 0,04 s, numa velocidade de inscrição de 25 mm/s foi tão prática que permanece a mesma apesar dos avanços da tecnologia do eletrocardiógrafo.

5-      Tecnologia muda de cara – O eletrocardiógrafo de corda original de Einthoven pesava 270 Kg, necessitava de várias pessoas para o registro e ficava localizado no Laboratório de Fisiologia ligado aos pacientes na enfermaria por cabos condutores na extensão de 1,5 Km.  O método de registro era fotográfico, o paciente necessitava imergir os braços e a perna esquerda em salina e  eram necessários uns 60 minutos para completar o exame. As derivações utilizadas eram apenas D1, D2 e D3. 

6-      Tecnologia abre novos campos de interesse clínico– O registro eletrocardiográfico facilitou o desenvolvimento dos estudos sobre arritmias cardíacas. O eletrocardiograma logo passou a ser considerado a “pedra de Rosetta –fundamental para a decifração de hieroglifos egípcios- das arritmias” e o “supremo tribunal das arritmias”. A interpretação que a fibrilação atrial – o chamado delirium cordis- tinha relevância clínica foi sustentada pelas  correlações  possibilitadas pelo registro eletrocardiográfico da ausência de onda P substituída por oscilações (ondas fibrilatórias) e da extrema irregularidade ventricular.

7-      Tecnologia beneficia-se do Marketing–  Em 1913, Sir Thomas Lewis (1881-1945), o inglês que contribuiu fortemente para consolidar o valor da eletrocardiografia, publicou o livro Clinical Electrocardiography  com o seguinte texto no Editorial: “… Este novo método  tornou-se essencial  para o moderno diagnóstico e tratamento de portadores de cardiopatia… Raramente ele é supérfluo…  Na maioria dos casos, os registros modificam nossa concepção sobre as condições clínicas com as quais lidamos…”. A História registra que a publicação elevou expressivamente os pedidos de compra do eletrocardiógrafo Cambridge (Cambridge Scientific Instrument Company), que já apresentava um formato mais acessível para o uso clínico.

8-      Tecnologia tem reconhecimento universal– Willem Einthoven foi agraciado com o Prêmio Nobel em Fisiologia ou Medicina, em 1924, aos 64 anos de idade e após cerca de três décadas do início do seu interesse em fisiologia do coração. Assim, o eletrocardiógrafo fica em mesmo plano de benfeitoria para a Humanidade com a Ressonância Nuclear por imagem  tendo como referencial o Premio Nobel, que  foi concedido, em 2003, aos seus idealizadores, o  americano Paul  Christian Lauterbur  (1929-2007) e o inglês Sir Peter Mansfield (nascido em 1933).

9-      Tecnologia tem declínio pela competição com as demais– O desenvolvimento de técnicas diagnósticas invasivas determinou a redução do uso da eletrocardiografia na pesquisa.  Do mesmo modo, a atenção a outras técnicas limitou a contribuição da eletrocardiografia para o raciocínio clínico acerca da circunstância nosológica. Recorde-se que a ecocardiografia, o método não invasivo que provocou um certo distanciamento da eletrocardiografia pelo clínico, ganhou projeção a partir da década de 80 do século XX, o que confere um “reinado” de cerca de 7 décadas.

10-   Tecnologia faz emergir especialidades– O conceito moderno de Cardiologia tem raízes nas primeiras décadas do século XX e uma delas é a eletrocardiografia entusiasmadora. Em 1920, foi criada a American Heart Association, em 1922 o British Cardiac Club, em 1936, a Japanese Circulation Society, em 1943, a Sociedade Brasileira de Cardiologia e em 1949, a European Society of Cardiology.

Tratando-se de Tecnologia, aspecto ético essencial é refletir sobre a chamada lei de Putt http://www.che.utah.edu/~ring/ChE%204903%20Projects%20lab/Putt%27s%20Law.pdf: “…Tecnologia é dominada por dois tipos de pessoas: as que entendem do que não conseguem manejar e as que  manejam  sem entender. Ou seja, o tempo tende a desenvolver uma inversão de competência a respeito de cada tecnologia. A bem da Ética, as limitações do método necessitam ser percebidas com realidade.

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