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72-Ortotanásia, conciliando a ordem afetiva com a ordem ética

Quem nasce, morrerá. No intervalo, há o direito à vida. Cada vez por mais tempo no Brasil, em função da crescente expectativa de vida.

Um dos pontos  curiosos da vida é a existência do tabu da morte. Cada um lida a sua maneira com ele. As proibições próprias do mesmo interligam-se ao entendimento que transgressões são fontes de punição. A resultante é a carência de discussão sobre o tema. Empurradas para debaixo do tapete, vocalizações necessárias sobre a morte formam calombos. Estes provocam tropeços. Especialmente, no caminho dos cuidados com a saúde na terminalidade da vida. A Bioética interessa-se pelo estudo da vulnerabilidade do ser humano ante a possibilidade da morte.

Quebrar tabus, é preciso. A ciência quebrou inúmeros. A imprensa colabora informando e esclarecendo. Razão motivadora, inclusive, para existência do excelente blog Morte sem tabu de Camila Appel mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br. Um “martelo” pensante e rompedor que recomendo!

Discutir tabus, é preciso. Dar-lhes manchetes é pedagógico, sacode a inércia dentro de nós. Nos últimos meses, a mídia repercutiu dois episódios acerca do direito à vida, provocando movimentações nos alicerces do tabu da morte. O primeiro foi sobre o suicídio assistido de uma jovem norte-americana, que já foi objeto de post neste blog bioamigo. Autonomia na sua raiz. O segundo foi sobre a pena de morte a um brasileiro no estrangeiro. Heteronomia por rígida determinação de um poder.

A condenação à morte de um brasileiro na Indonésia, um país-arquipélago com população maior do que a do Brasil, teve seu ponto inicial num “diagnóstico” de gravidade, com fator de risco conhecido. O “prognóstico” sombrio  logo foi  aventado. A pessoa envolvida submeteu-se a um processo pretendendo  beneficiar o seu futuro em relação ao que lhe foi antecipado  em função de diretrizes locais de lidar com a questão. Durante alguns anos, conviveu com a infelicidade, tendo, pelo que se noticiou, apesar do cárcere, uma certa qualidade de vida, incluindo otimismo quanto à não consecução do prognóstico. Apelos para a evitação da morte não tiveram o efeito pretendido. Uma percentagem apenas do pelotão que puxou o gatilho tinha bala mortífera e cada um dos atiradores ignorava em que grupo se situava.

Nestes casos de terminalidade da vida, um ser humano gravemente doente dirigiu-se  para a morte, por vontade própria, com os olhos  bem abertos sobre a sua tomada de decisão e outro ser humano sem uma doença, pelo que se sabe, caminhou para a morte de olhos vendados aguardando passivamente o desfecho. O conhecimento pelo noticiário e as discussões geradas, certamente, fizeram  fissuras no tabu da morte. Muitos que não ousavam nem pronunciar a palavra morte, o fizeram no calor das discussões. Reação positiva!

A sociedade brasileira está atualmente envolvida na quebra de um tabu da morte, aquele que se opõe a não aplicação de métodos terapêuticos que, embora eficientes, seriam inúteis e ineficazes na circunstância de terminalidade da vida de um paciente, ditada pela Medicina. O “martelo” que ganhou eticidade há poucos anos, responde pela denominação de ortotanásia. Orto significa correto e tanásia deriva de Thanato, o deus grego da morte por um toque suave, gêmeo de Hypnos, o deus do sono.

Em recente entrevista, eu verifiquei que há necessidade de mais explicações sobre a ortotanásia para a população em geral. Os esclarecimentos acontecem, habitualmente, apenas para as pessoas ao redor da condução de um caso de terminalidade da vida. Há, inclusive, confusão com o termo eutanásia, perfeitamente compreensível pela semelhança filológica, eu quer dizer bom. O uso trouxe diferenças de significado. Esclareça-se que a eutanásia é proibida no Brasil.

Ponto a destacar é que a condução da terminalidade da vida como ortotanásia não é nem uma ação do paciente como no suicídio assistido, nem pena de morte imposta a quem desejaria receber todo tipo de método conceitualmente beneficente.

A ortotanásia é instrumento de evitação consentida do prolongamento de uma vida com grande sofrimento e com morte inevitável no curto prazo. Esta condição a ser rejeitada denomina-se distanásia, onde dis representa mau. Em outras palavras, a ortotanásia previne a distanásia.

Em relação aos episódios acima mencionados, a ortotanásia comunga com a ocorrência de diagnóstico de gravidade, prognóstico desconsolador  pelas imposições evolutivas, “apelos” impossíveis de atendimento em face de ordenamentos, períodos de razoável qualidade de vida e a conveniência de suporte humanístico. Contudo, a ortotanásia difere no processo da morte. A paciente  referida acima manejou ela mesma a ingestão dos comprimentos em dose letal. O condenado mencionado dependeu do manejo de alguém que lhe era desconhecido.

Na ortotanásia,  o médico que assiste os momentos  terminais do paciente sabe que não é “acionador de bala mortífera”. Ele entende que a decisão foi vinculada à doença que se impôs mais poderosa do que a  Terapêutica, razão da não introdução ou da suspensão do uso de métodos conceitualmente beneficentes. Ele é conhecido do paciente -e/ou dos familiares-, ele esclarece  sobre os cenários da persistência e da desistência, ele aguarda o consentimento para ajustar a prescrição à natureza dos cuidados paliativos e continua cuidando do paciente. O paciente tem o direito de escolha, a liberdade para reagir de acordo com preferências e com valores, a garantia que não sofrerá a mais por imposições terapêuticas pretensamente zelosas.

Inexorável evolução para a morte é linguagem comum  em textos antigos de Medicina. Ela expressava a carência de recursos, que, felizmente, não mais faz parte de grande número de doenças. Mas a sentença persiste pronunciando-se. Se por um lado, estimula a inovação técnico-científica e motiva ações de humanismo, por outro, dá validade ao pioneirismo do artigo 1° da Resolução 1805/2006 do Conselho Federal de Medicina: É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal. http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/2006/1805_2006.htm. Após a sua incorporação no Código de Ética Médica vigente, os ajustes sobre prudência e zelo, exigências  individuais na condição de terminalidade da vida,  puderam ser  melhor cumpridos sem  o rótulo de imprudência e/ou de negligência.

A impropriedade da distanásia e do seu alter ego obstinação terapêutica que sustenta a paliação  desejada no lugar do fútil indesejado foi objeto de legislação no estado de São Paulo, há cerca de 15 anos.  A lei 10241/99 dispõe que são direitos dos usuários dos serviços de saúde: recusar tratamentos dolorosos ou extraordinários para tentar prolongar a vida (artigo XXIII) e optar pelo local de morte (art. XXIV).

Há informação que se estuda a inclusão da ortotanásia na reforma do Código Penal brasileiro, bem-vinda para reforçar que tanto limitações quanto provocações da ciência não significam desatenção, descaso, imprudência ou negligência do profissional da saúde que esteja respeitosamente ao lado do paciente e de suas escolhas ao final da vida.

O médico é pessoa que associa ser humano e prerrogativa profissional para intervir diretamente na questão. É desconfortável para ele ter tido a capacidade de atingir o diagnóstico e não poder utilizá-lo para selecionar métodos resolutivos ou que proporcionem uma relação doente-doença com qualidade de vida aceitável.  Mas, faz parte da sua missão o respeito à metáfora da beira do leito- estar ao lado do paciente-, proporcionando relação interpessoal compassiva independente do que possa fazer e do que não deva fazer.

Evidentemente, a decisão que resulta tomada  sobre ortotanásia no estrito ambiente da relação médico capacitado-paciente capaz é passível de opiniões divergentes e de contrapontos  éticos e legais. Além do tabu.

Mas, nos últimos tempos, evidências  – dados, fatos, pensamentos- têm conduzido retroalimentações em prol de consensualidades. O princípio da autonomia é fundamento marcante, pela redução de imposições heteronômicas à relação médico-paciente. A autonomia do paciente e a autonomia do profissional da saúde passaram a ser pilares de uma tomada de decisão que pode ser a preferência por paliação ao doente, em vez de insistência terapêutica à doença.

É sabido como muitos pacientes se dizem “cansados” do sofrimento, que consideram excedido o limite de suportar a circunstância, ou, que não desejam uma vida desqualificada porque ligada a máquinas e porque sem perspectiva de evitar a morte no curto prazo.  Cada pessoa reage a sofrimentos de acordo com vivências e com valores. A dor insuportável pode ser combatida por fármacos, mas há diferenças de respostas quanto à manutenção do uso prolongado – muitas vezes crescente-, em função da ausência de reversibilidade e da progressão do fator causal. É o mundo real de alto valor para o exercício humano da Medicina.

Um documento chamado Diretiva Antecipada de Vontade (“Testamento Vital”) passou a estar à disposição do brasileiro. É uma escritura pública que se registra em Cartório de Notas a ser apresentada ao médico para ciência do que seria consentimento ou não, caso o paciente subscritor estivesse capaz de lhe transmitir diretamente suas vontades.

Em suma, o direcionamento que testemunhamos na última década no Brasil é de considerar que a não introdução ou a suspensão do uso de métodos terapêuticos, desde que fundamentadas em vontades dignas de respeito pelas circunstâncias de terminalidade de vida, representam atos que, se por um lado, influenciam o timing da morte do paciente, pois não se opõem à inevitabilidade prestes a acontecer, por outro,  não são equivalentes de uma  intenção de se omitir um tratamento (não iniciar) ou de tirar a vida do paciente (suspender o uso).

A Bioética da Beira do leito entende que o jovem médico precisa desenvolver a capacidade de expressar compaixão perante individualidades tristes do paciente.  A aceitação da  ortotanásia  contribui para a educação sobre como lidar com este sentimento sem  impor-se como dever profissional. É ter ao alcance uma conciliação da ordem afetiva com a ordem ética.

 

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