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87-Entreabrindo a porta para a Bioética

principal_portas_corta_fogo_1A expansão da Bioética entre nós mostra-se acanhada. Procuro razões da falta de laços e, ao mesmo tempo, pesquiso formas eficientes de motivar e produzir vínculos.

Experiências em outros países são peças inspiradoras, mas, comumente, os formatos para os encaixes de lá necessitam de ajustes para montar nossos quebra-cabeças. É preciso incutir a doutrina da Bioética o mais possível aplicável às características brasileiras da beira do leito, plena de categorizações associadas a diversidades regionais notórias dos cuidados com a saúde num país continental, pluri étnico e multicultural.

Um ponto de referência é o Residente de Medicina brasileiro que, diploma numa mão e carimbo noutra, caminha ao encontro da experiência da beira do leito. Reproduzo o que um deles me disse durante uma Oficina de Bioética no InCor: “… Esta tal de Bioética parece interessante, mas para o que é que serve mesmo?… Quando eu estudo num livro, faço uma revisão sobre determinada doença numa revista, vou atrás de uma diretriz, não leio que há necessidade de aplicar a Bioética…”.

Evidentemente, a observação foi feita por um jovem médico com seu número de CRM sem calos ainda. Ela foi uma luz, todavia. Percebi a relevância de apresentar a Bioética como valor na aplicação técnica.

Veio à mente, a antiga e folclórica lição de marketing: Vendedor, ao tocar a campainha da casa, já prepare o pé, que deve estar calçado com sapato forte; assim que a dona de casa abrir a porta e de pronto  vocalizar que não está interessada nos produtos, adiante o pé para impedi-la de fechar a porta e engate imediatamente a fala sobre a utilidade, o baixo custo, etc…etc…

Creio que tocar a campainha dos profissionais de saúde não é difícil. Criar uma oportuna “porta entreaberta” para exaltar as qualidades do “produto” Bioética se consegue com dedicação e paciência. Mas o que falar com potencial de convencimento para haja a “compra” da Bioética é que é a questão.

Dissecando a manifestação do Residente, ocorreu-me uma vantagem: dar ênfase a como a Bioética contribui para que a aplicação da leitura de um capítulo de livro, da análise de uma revisão ou da consulta a uma diretriz seja facilitada, seja mais eficiente, não provoque retrabalho, evite conflitos, resulte em satisfação geral, seja elogiada, melhore a auto-estima, constitua um exemplo “pros vizinhos”. Em outras palavras, focar numa  Bioética de todos nós.

Destaco três matérias-primas para uma exposição genuína com chance de agregar simpatizantes à Bioética.

1. O tempo: Um tratamento não se restringe à receita escrita e entregue ao paciente como ponto final, objetivo primário do uso do conhecimento adquirido nas fontes de aprendizado. Algo como: “… Assim eu li, assim eu pude fazer e assim me desempenhei como profissional… Eu fiz o diagnóstico, conforme normatizado e eu prescrevi, conforme validado, portanto cumpri minha missão…”. É um tempo quantitativo, “dos ponteiros do relógio”. Figura-se um paciente passivo que se coloca entre um livro- para o qual não tem capacidade de interpretação- e o médico, que faz para ele.

Entrementes, há o tempo qualitativo. Ele permeia os significados da consulta numa dimensão além da simples produção da receita mencionada. Nele, há uma enxurrada de pensamentos, emoções e resoluções, algumas aceleradas, outras jogadas para debaixo do tapete, às vezes explicitadas, às vezes manifestas sob subterfúgios. Medo, alívio, confiança, dúvidas, empatia, satisfação, raiva, e muito mais, compõem este tempo humano. E ele, qualitativo que é, tem força suficiente para influenciar o grau de harmonia da relação médico-paciente numa amplitude transconsulta, ou seja, pré, intra e pós-consulta.

A consideração do tempo qualitativo em adição ao tempo quantitativo remete, assim, para a construção de um cenário de momento sensível a possibilidades evolutivas. A prudência é elemento essencial do tempo qualitativo pela propriedade do compromisso com o futuro. Ao trazer a emoção para junto do aspecto técnico, ela facilita ajustar o timing do zelo. Uma segunda opinião é mais tempo qualitativo do que quantitativo, carregado da emoção do paciente e que, mais comumente, faz mesma primeira opinião acontecer com o zelo pretendido, algum tempo depois.

A palavra-chave de interesse da Bioética para ambos os tempos é comunicação.  Pela qual, o médico dialoga alternada e sucessivamente com a Medicina e com o paciente. Por este “pingue-pongue” do médico, o tempo qualitativo requer que o diálogo com a Medicina – realizado no dialeto disciplinar- seja bem traduzido para o paciente. É o valor do esclarecimento.

A Bioética ajuda a enxergar este valor do esclarecimento. Na inexistência do mesmo, a receita bem elaborada, assinada e carimbada tem chance de trilhar um terrível terreno movediço de relação médico-paciente. Aquele com locais onde caem por terra os mais elevados objetivos do conhecimento da Medicina.

A compreensão desejável situa-se em duas mãos de direção: a) no sentido profissional da saúde-leigo, quer sobre benefício de métodos, quer sobre segurança para o paciente, imediatos e tardios; b) no sentido ser humano paciente- profissional da saúde, a respeito de preferências e de valores. A conseqüência da boa compreensão é o médico permanecer presente “ao lado do paciente” além da sua presença física, dando a credibilidade que favorece a adesão às recomendações.

Aproveitando as palavras acima do Residente de Medicina, quando ele se atualiza em diabete, por exemplo, ocorre, simultaneamente, um sentimento paternalista: o apreendido é o  que ele deve se obrigar a fazer no próximo diabético que for atender. Esta superposição entre diabete em geral e diabético em particular é o que sustenta as matérias-primas 2 e 3, a seguir.

2. A individualidade do paciente: De fato, o aprendizado técnico-científico teórico sobre uma doença direciona para certa impessoalidade na prática do atendimento, que decai do noviciado para a aposentadoria em acelerações distintas. Isso porque a incorporação do conhecimento da Medicina recomendado constrói um estereótipo de paciente para o máximo de usufruto do estado da arte vigente. Uma generalização do comportamento subentende alguém que toma o medicamento eficaz, submete-se a uma operação curativa, muda de hábitos para reduzir riscos, etc…, em conformidade com as melhores evidências científicas disponíveis.

O médico que anseia aplicar o uptodate, por isso, edifica uma figura de paciente 100%:

a)      100% cooperativo;

b)      100% confiante no médico;

c)       100% não questionador;

d)      100% satisfeito com o tempo a ele dedicado pelo médico;

e)      100% destituído de familiar exigente de explicações;

f)       100% controlado emocionalmente;

g)      100% isento de adversidades;

h)      100% ajustado aos resultados e ao prognóstico “de livro”.

As calosidades do número do CRM vão se formando e os 100% vão sofrendo as reduções do mundo real. Vem o dilema: impor-se a ciência ou apresentar a ciência à disposição?

A Bioética adverte sobre a inconveniência de uma atitude paternalista forte por parte do médico que, impositiva, monta cercas para que as manifestações humanas do paciente/família não “prejudiquem” a transposição ipsis literis do conhecimento para o atendimento. A Bioética estimula pontes éticas para a troca de mensagens esclarecedoras entre os interessados.

E porque a inquietude surge, habitualmente, quando o médico se vê de alguma maneira impedido de concretizar o que julga útil e eficaz, a Bioética pode lhe trazer uma palavra de tranquilidade. Ela aconselha o médico a não entender como ilegítima a recusa do paciente que possa levar a efeitos negativos sobre os resultados almejados.

A Bioética ressalta o direito do paciente de participar ativamente das tomadas de decisão sobre a própria saúde. Ela considera que o paciente não tem o mesmo nível de compromisso com o conhecimento técnico-científico que o médico introjeta  pelo estudo e pela experiência. E a Bioética reforça, ainda, que o paciente que emite um não consentimento de maneira autêntica assume a responsabilidade pelo mesmo. Consequentemente, a não aplicação do conhecimento assim determinada não representa negligência do médico, já que ele respeitou o princípio da autonomia, conforme o entendimento atual da boa relação médico-paciente.

Em suma, a Bioética  acentua que aquele portador “racional” de diabete  que habita o livro é, na verdade, um ser humano que preenche os critérios de diagnóstico para a doença cercado de sentimentos e de outras pessoas por todos os lados. E que ambos  representantes do calor humano não devem ser reprimidos em nome das boas práticas enxergadas com as lentes do conhecimento técnico-científico.

3.  A personalização da doença: Em janeiro de 2015, o Presidente dos EUA  Barack Obama, nascido em 1961, lançou um estímulo para pesquisa denominado Precision Medicine, com o objetivo de incrementar a informação personalizada do paciente, particularmente na área do diabete e do câncer  http://www.nejm.org/doi/pdf/10.1056/NEJMp1500523.

Precision Medicine corresponde a estratégias de prevenção e de tratamento focadas nas peculiaridades biológicas de cada pessoa. Objetiva-se uma nova Taxonomia  para as doenças humanas integrando clínica e dado biomolecular com apoio da tecnologia da informação para sustentar tomadas de decisão mais ajustadas à individualidade do paciente. A bola de cristal, um sonho da Bioética, sem dúvida.

Enquanto o mundo real da beira do leito de hoje não conta com  genoma, epigenoma e microbioma, uma “Medicina Imprecisa” explica a ocorrência de percentuais de inutilidade, ineficácia e adversidade, de difícil previsão, como resultado da aplicação do validado como útil e eficaz para a circunstância clínica. Permanecemos integrados ao poder estatístico, quer seja para uma conclusão de superioridade terapêutica numa pesquisa, quer seja para prognósticos de resultados da aplicação assistencial desta superioridade.

Portanto, o conhecimento que o Residente de Medicina acima mencionado  apreende da literatura está mais para verdade validada da atualidade da Medicina do que para certeza de resultado no paciente. É tradição da Medicina que o médico não prometa resultados. A missão é o empenho pelas boas práticas que direciona para o sucesso, mas encontra peculiaridades de insucesso.

É por isso que a Bioética recomenda que o empenho técnico-científico, desacompanhado de critérios mais precisos para distinguir para qual grupo evolutivo determinado paciente caminhará, não somente ilumine a esperança do benefício, como também alerte para a possibilidade de indiferenças e de danos. Sabe-se como a inovação farmacológica tem elevado o percentual de alcance de objetivos primários em pesquisas clínicas. Este comportamento acentua o desnível entre benefício (maior) e dano (menor), mas cada atendimento é uno no seu resultado. O velho ensinamento que  a baixa chance de 1% torna-se 100% para quem nela se efetivar.

A Bioética, assim, recomenda fortemente ao médico que tome a iniciativa de incluir o paciente como partícipe da tomada de decisão. Não se trata de estratégia para reduzir ou dividir responsabilidades. É  respeito à visão de benefício e de dano que cada paciente construiu ao longo da sua vida.

Vamos criar mais oportunidades  para entreabrir portas da beira do leito para a apresentação da utilidade da Bioética! A Bioética cai bem no Brasil!

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