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97-Bioética da Beira do leito e do Ciberespaço?

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Crédito: http://www.learntheheart.com/blogs/cardiac-physical-exam-portable-echo/

09113307445081A piada é conhecida: Jesus Cristo, médico iniciando na Unidade de Saúde, atende um paciente paraplégico, que, pouco depois, sai do consultório andando perfeitamente.  Bate a curiosidade otimista na sala de espera: o que você achou do novo médico? A resposta foi contundente: igual aos demais, nem me examinou.

Um ponto positivo do humor é ser reflexivo. Um movimento do disparate ao sentido. Podemos deduzir do exposto que: a) a sala de espera almeja o tratamento eficaz; b) o paciente deseja atenção do médico; c) a identidade do médico fica em plano secundário.

A tradição hipocrática, aquela que resgatou a Medicina dos deuses, exige a relação médico-paciente presencial. Numa época de telefonia à mão e na mão, persiste dever moral do médico praticar o atendimento presencial, embora, a bem da verdade, fica difícil  tipificar no Código de Ética Médica vigente aquele hipoteticamente realizado via celular, através de algum aplicativo futurista e constante no prontuário do paciente.

Este ético presencial  admite,  atualmente, um “terceiro ser”. É o computador. Ele tem vida, alimenta-se, trabalha e dorme. Aprisiona nossas vidas, também.  Ele insere-se no disposto pelo art. 85 do Código de Ética Médica vigente: é vedado ao médico permitir o manuseio e o conhecimento dos prontuários por pessoas não obrigadas ao sigilo profissional quando sob sua responsabilidade.  Uma senha  tornou-se  tão necessária ao médico quanto o carimbo com nome e número do CRM.  

Atendimentos médicos, em parte do Brasil, incluem a presença da informática. Quando ela chega, não tem volta.  Determina um novo poder à prática médica, nomeado, no dia-a-dia como computador, rede, sistema. Armazenamento, processamento e  expedição  viabilizam registro do paciente, prontuário eletrônico, requisição de exames, receita médica, manejo de métodos de imagem, laudo de exames.  Ademais, interligações a uma intranet e possibilidade de acesso à internet.

A relação médico-paciente-computador  é nítida: o médico faz anamnese e digita, conclui o exame físico e digita, pratica um exame de imagem digitando, etc…, etc… Desta forma, o paciente torna-se um habitante determinado de um sistema indeterminado, sob uma plasticidade que exerce impactos transformadores na relação médico-paciente.

Devemos, então, expandir  a metáfora da beira do leito – representativa dos cuidados com a saúde- e  associar  um ciberespaço -termo criado por William Gibson, nascido em 1948, no livro Neuromancer na década de 80. Ou seja, incluir um espaço virtual proporcionado pela tecnologia da informática?

Mas já não era assim com o prontuário em papel?  Memória e obrigação ética de anotação. Não exatamente. Observa-se um compartilhamento distinto, mais veloz, mais organizado, mais interativo, independente de um local de arquivo fixo e mais ajustado aos novos tempos técnico-científicos. As novas gerações de médicos já não têm o aprendizado com prontuário de papel em vários Programas de Residência Médica. O treinamento direciona-se para a relação médico-paciente-computador.

Voltemos ao tempo, não muito distante, aliás. Tirar uma radiografia era impressionar uma chapa que o médico colocava num negatoscópio para analisar. Mãos e olhos  num mesmo local.  O negatoscópio  aposenta-se e ingressa no museu  da Medicina. O  tal do sistema captura a imagem e a tela do computador faz as vezes mais confortável daquela lâmpada sobre um vidro numa caixa pendurada na parede. Um cateterismo cardíaco virava um rolo de filme a ser apreciado numa máquina de projeção de imagem sob rodas conhecida por Tagarno – o nome do fabricante dinamarquês- , presente em alguns poucos locais do hospital. Lembro-me que o Professor Titular de Cardiologia tinha o privilégio de ter um no seu gabinete. O computador democratizou o acesso responsável à informação sobre o paciente.

Teclado e tela em feedback. A tecnologia avançada da informação apoiando a tecnologia avançada da propedêutica. O identificado pelos 3 gigantes da imagem em Saúde – tomografia, ressonância e ultrassonografia- canalizado para um espaço que às vezes falamos que está no computador, às vezes dizemos que está na rede, às vezes entendemos que está no sistema, denunciando que não sabemos muito bem onde ele se encontra. Num servidor – questão encerrada. Confiança na recuperação instantânea da informação, a reprodutibilidade facilitada em qualquer ponto pertencente à rede.

Todavia, as vantagens inequívocas  da era digital convivem com uma característica que corre o risco de representar um desafio ético. É, neste mundo contemporâneo, o dominante propósito por velocidade, a obsessiva intenção de baixar tempos e sentir-se mais eficiente. O que de, certa forma, inclina-se para a expansão da imagem e o encurtamento da palavra.

A aceleração, como valor da relação médico-paciente, pode não representar melhor distribuição do tempo para atenção a mesmo paciente. Não se pode perder tempo, pensamos, mas nem sempre sabemos dar utilidade ao “ganho”. Numa situação eletiva, o que dizer de uma anamnese simplificada e de um exame físico restrito a única tomada de pressão arterial, porque parece ser mais importante uma identificação anatômica? Como se uma liberação precoce do paciente da consulta determinasse um imediato lugar numa fila para a realização do exame e retorno em mais curto prazo.- urgência e emergência à parte, evidentemente.

Anamnese e exame físico em quantidade justa são insubstituíveis, especialmente para o médico que valoriza a individualidade de cada paciente.  Ou seja, não se “baixam” sintomas e sinais desde o paciente “contaminado” pela ideia de que quanto mais veloz melhor. O risco de anamnese e exame físico tornarem-se cada vez mais reduzidos na esteira do “mundo veloz” e  abreviados em palavras está interligado ao realce da sensibilidade e da especificidade bem divulgado dos exames complementares. Alguém conhece bons estudos sobre a acurácia de fato medida de sintomas e de sinais clássicos do exame físico? É confiança tácita, reforçada pelo tempo, que um fígado palpável é hepatomegalia, mas quanto porcento poderá se tratar de um rebaixamento com dimensão normal?   Revisões sobre sopros cardíacos, por exemplo, mostram grande variação de falso positivos e de falso negativos. Forma-se tendência a mais imagem por máquinas e menos imaginação provocada pelo sinal identificado pelo médico propedeuta da beira do leito.

O atendimento médico mal regulado pelo espírito da era digital é caldo de cultura para o desrespeito ao art. 32 do Código de Ética Médica vigente: é vedado ao médico deixar de usar todos os meios disponíveis de diagnóstico e tratamento, cientificamente reconhecidos e a seu alcance, em favor do paciente.  

Assim, o pensamento de Confucio (551ac-479ac)  uma imagem vale mais do que mil palavras  vigora tanto tempo depois num molde século XXI  que traz conexões com a dinâmica da relação médico-paciente-computador e implicação ética. O desafio a que me refiro da anamnese e do exame físico sustenta-se na ausência de geração de imagens armazenáveis e de cronometragem sobre o quantum satis. Já os exames de imagem, muito embora possam requerer tempo maior para a execução, obedecem a um protocolo de realização que não é reduzido pelo livre desejo, até porque denunciável pela reprodução das imagens.

Nós, súditos da Clínica Soberana, pretendemos que as incertezas de anamnese e de exame físico justos continuem a acontecer pela inevitabilidade e motivar corretamente os exames complementares. Todavia, há preocupação que as dúvidas nem sejam geradas na fonte, simplesmente, pela escassez de comprometimento do médico com estes métodos essenciais, na esteira do entendimento que haverá mais eficiência na imagem, uma valorização pela modernidade da informação.

Fica a  possibilidade de uma “terceirização” do copy (anamnese e exame físico diretamente do paciente)-paste (anotação no prontuário) para um “post” laudo de exame complementar. O que é um  um reforço da mentalidade de transferência do espaço físico presencial para o ciberespaço. O fortalecimento da ideia que lacunas estarão compensadas a um simples clique de complementos. Trabalho em equipe? Não deixa de ser, porém mau qualificado eticamente  se for centrado numa preferencial solicitação de exames complementares e em  tomada de decisão fortemente  amparada na leitura dos laudos.

A Bioética da Beira do leito esforça-se para que a superficialidade no espaço presencial do encontro médico-paciente e a fluidez do ciberespaço não dominem o processo de identificação das necessidades de saúde do paciente. O modelo hipocrático não está esgotado, ele precisa continuar acompanhando as transformações do progresso técnico-científico e da sociedade, mas sem abdicar da força das mãos e dos olhos diretamente sobre o paciente.

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