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431- Um valor pedagógico para o não consentimento (Parte 4)

O treinamento em conflitos na relação médico-paciente ajuda a evitar que o médico se sinta ensimesmado e desamparado ante as frustrações provocadas pelo não consentimento do paciente, sem garantias éticas e legais. Ele auxilia a interpretar o significado do grifado no Princípio Fundamental XXI do Código de Ética Médica vigente- No processo de tomada de decisões profissionais, de acordo com seus ditames de consciência e as previsões legais, o médico aceitará as escolhas de seus pacientes, relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos por eles expressos, desde que adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas. Evidentemente, um não consentimento ao recomendado pode ser uma opção do paciente nem adequada ao caso, nem cientificamente validada, o que coloca a preposição desde numa situação de ambiguidade interpretativa.

Enfim, o objetivo deste artigo é repercutir o pensamento de Hanna Arendt (em azul) expresso no livro ENTRE O PASSADO E O FUTURO para ressaltar uma não infrequente dissintonia entre modos de pensar do médico e do paciente, desacordo que não significa exatamente falta de confiança do paciente, muito mesmo fracasso da razão, mas fruto da apreciação da situação sob outros ângulos não dominados pelo tecnicismo inerente ao profissionalismo. Os casos de não consentimento com potencial de forte repercussão no prognóstico são minoria em nossa cultura, mas muitos deles tornam-se bombas-relógio para explodir sem prazo e gravidade bem definidos. Em vermelho, esboçamos uma adaptação para a beira do leito.

O astronauta arremessado ao espaço sideral e aprisionado em sua cabine atulhada de instrumentos, na qual qualquer contato físico efetivo com o meio ambiente significaria morte imediata, poderia muito bem ser tomado como a encarnação do homem de Heisenberg (o físico Werner Karl Heisenberg, 1901-1975, Premio Nobel de 1932)- o homem que terá tanto menos possibilidades de deparar algo que não ele mesmo e objetos artificiais quanto mais ardentemente desejar eliminar toda e qualquer consideração antropocêntrica de seu encontro com o mundo não-humano que o rodeia.

O jovem médico contemporâneo lançado na beira do leito atrelado ao compromisso com sucessivas atualizações das evidências científicas que surgem sucessivamente com crescente sustentação tecnológica, trabalhando num ecossistema em que o contato efetivo com a pessoa do paciente sucumbe diante da exiguidade do tempo a ser distribuído pelas exigências de cumprimento de normatizações -diretrizes clínicas, administrativas, segurança profissional- do atendimento, direciona-se cada vez mais para representar um profissional que:

               a) exibe grande influência de captações por máquinas tidas com “órgãos dos sentidos” superiores aos seus – médico tendo por tarefa diagnóstica primordial a solicitação de exames complementares e tomando decisões terapêuticas baseadas essencialmente nos laudos-, assim entendendo o ofício estimulado que foi pelo treinamento de hierarquizar os aspectos técnico-científicos de validação coletiva que dispõe ao seu redor em grande vantagem sobre  qualquer avaliação das individualidades antropocêntricas;

               b) embora conheça a responsabilidade sobre a saúde das pessoas, empenha-se  refém de um centralismo técnico – racional> percepção emocional-, como se tivesse uma liberdade presumida de atuação e deixando em segundo plano que está sujeito a instrumentos organizados de apoio à segurança e à diversidade da sociedade em geral – como normas e códigos;

                c) manifesta uma generalização de pensamento -uma frieza mesmo- sobre as reações humanas do paciente, sempre condicionado à dimensão da Medicina – em que qualquer o não consentimento pelo paciente a uma recomendação médica é observada essencialmente como perda de oportunidade para a obtenção do benefício presumido, sem um componente de empatia com uma postura leiga submetida a causas individuais que devem ser motivo de apreciação, eventualmente necessitada de mais esclarecimentos e com potencial de reversão da objeção. 

A fim de evitar prováveis apreciações de exagero, pontuo:

  1. A Bioética da Beira do leito reforça que o progresso da Medicina que possibilita sucessivos melhores resultados terapêuticos e preventivos cada vez mais apoiado na alta tecnologia é bem-vinda e assim deve-se manter no rumo da Medicina de precisão e no apoio pela inteligência  cognitiva. Mas, nem tudo que é bem-vindo, chega fazendo o bem, ou seja, os alertas não são manifestação de saudosismo inconsequente de A clínica é soberana.
  2. O paciente que poderia se beneficiar das evidências científicas e da aplicação da tecnologia, mas não consente com a aplicação, é, acima de tudo, um ser humano que faz a análise das circunstâncias da própria saúde impactado, habitualmente, pelo grau de acentuação da vulnerabilidade que tem chance de perturbar a objetividade sobre desejos, preferências, objetivos e valores. Ou seja, corpos doentes iguais possuem caras distintas, reações peculiares e até mesmo inesperadas, e, no conjunto, eles não têm obrigação moral ou legal de usufruir sem ajustes a personalidade e temperamento nem do clássico consagrado nem das inovações esperançosas das ciências da saúde.
  3. Conquanto a emissão de recomendações de condutas diagnósticas, terapêuticas e preventivas possa ser padronizada e globalizada por organizações confiáveis, como as Sociedades de especialidades, com enunciados sob igual teor para distintas culturas numa pretensão de igualdade biológica dos seres humanos, pois a maioria da etiopatologia das doenças é a mesma em qualquer parte da ampla extensão do nosso planeta, fica claro que a recepção do significado de benefício e de malefício associa-se a alta diversidade, mesmo na exiguidade de um mesmo quarteirão. Dois vizinhos com mesmo CID não são exatamente gêmeos do interesse por determinada conduta validada e indicada com boa dimensão de efeito e probabilidade de certeza. Cada um preenche lacunas por analogias com o conteúdo da memória e por imaginação sabe lá em que extensão.
  4. Portanto, a preservação do caráter social da Medicina que inclui  prioritariamente a evitação do desvio antropocêntrico tradicional requer a visão da inconveniência de privilegiar única soberania – superioridade na contribuição- na beira do leito. É preciso haver uma parceria equilibrada entre as distintas soberanias aplicáveis, ou seja, no decorrer do atendimento às necessidades de saúde de um paciente, as soberanias clínica, da evidência científica, da aplicação da tecnologia e a do direito à autonomia pelo paciente, têm chance de serem reputadas como a soberana da atuação em determinado momento. Em outras palavras, não cabe competição entre as soberanias, pois cada uma delas qualifica-se para preencher um determinado papel em determinada fase, e mais, o exercício de boa qualidade da soberania de cada uma depende do exercício de outra. Por exemplo, na primeira observação pelo médico da dor da cólica nefrética, a soberania clínica (observação da queixa e do facies de dor intensa com corpo flexionado e mãos no flanco respectivo) é suficiente para a formulação da mais provável hipótese diagnóstica, ensejando, subsequentemente, a participação da soberania da tecnologia de imagem para a confirmação da presença do cálculo obstrutivo presumido com razão de verossimilhança positiva.
  5. A habitualidade que vem sendo observada nos atendimentos de terceirização do raciocínio clínico para máquinas que executam a captação de imagens com resoluções fantásticas como base para o diagnóstico, se por um lado, é vantajosa, por outro compromete a capacidade e a valorização profissionais da resposta empática ao paciente, fundamentais na relação médico-paciente, especialmente em momentos de contraposição -não consentimento pelo paciente à recomendação médica. O risco é o abuso da terceirização prioritária para máquinas, ensejando um indesejável desequilíbrio entre enorme emissão de qualificação técnica e reduzida capacidade de compreensão pelo médico da pluralidade de recepção e do nível de aceitação em momentos de não consentimento.
  6. Finalmente, reproduzo o artigo 32 do Código de Ética Médica vigente com o intuito de reforçar o efeito que pode ocorrer pela linguística deontológica na consciência do médico brasileiro: É vedado ao médico deixar de usar todos os meios disponíveis de diagnóstico e tratamento, cientificamente reconhecidos e a seu alcance, em favor do paciente. Por este único artigo teríamos uma forte expressão  de liberdade do médico, ele não pode aceitar uma oposição ao uso por instituições, sistema de saúde e paciente capaz.  Contudo, este artigo é xifópago do artigo 31, que toca também em liberdade, agora a do paciente, por isso, ambos não têm uma vida isolada: É vedado ao médico desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte.  É uma gangorra difícil de equilibrar, pois o excesso de peso quer sobre a  beneficência, quer sobre a autonomia, se por um lado significa uma segurança de “pé no chão”, por outro cria inevitavelmente uma grande distância entre as mesmas.

Por fim, parodiando o provérbio Casa onde não há pão todos brigam  e ninguém tem razão – porque o problema é a falta do pão: na beira do leito onde falta consentimento  pelo paciente, todos se indispõem, cada um empunhando sua razão. Frente ao dissenso, o caminho resolutivo é o médico empenhar-se pelo consenso, não apenas pelo convencimento ao paciente sobre o racional científico, mas, especialmente pela manifestação da capacidade empática. É a pedagogia do não consentimento exercida na sala de aula chamada beira do leito.

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