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400- Manos humanos?

Um médico na plateia em simpósio recente expressou com ênfase nostálgico sua preocupação com a queda do aspecto humano na relação médico-paciente.

Entendo que não se deva fazer uma comparação simplista do tipo antigamente havia mais expressão de sentimentos aplicados na relação médico-paciente, até porque dois pacientes nunca percebem de modo idêntico o atendimento por mesmo médico, a sociedade muda, há mais exigência de bons resultados em função das informações disponíveis e o paciente nem sempre se comporta do modo idealizado.

Creio que o bioamigo há de concordar que o progresso da Medicina colocou – não para de colocar- nas mãos do médico métodos técnico-científicos com especial poder resolutivo, com alto potencial de provocar paixão profissional pela utilidade e eficácia, desenvolvida desde a graduação e reforçada pela Residência Médica. Como consequência desta perseguição pela excelência, dá-se um redimensionamento de objetivos que pode suscitar obscurecimentos de contra fluxos não científicos relacionados à pluralidade da condição humana.

Desejoso da aplicação “a mais eficiente”, o médico privilegia uma narrativa que lhe parece mais simples de condução, assim praticando um reducionismo pragmático da complexidade associada aos componentes humanos do caso – “… De jeito nenhum, o senhor tem que fazer o exame…”. É efeito de uma força centrípeta em direção a uma soberania do conhecimento científico que apresenta evidentes ambiguidades com os limites de  demais soberanias – clínica e do paciente, por exemplo.

É situação onde qualquer afirmação de desumanização não deve ser entendida como desatenção, pois ela representa, na verdade, insuficiência do autodomínio de um autoritarismo técnico-científico, conhecimento e poder com visão unilateral do entendimento de benefício que transborda dos textos onde se aprende o que fazer.

A reflexão é válida na medida em que a realidade de bom percentual de pacientes é a dispensa de uma análise mais estruturada para sustentar o seu consentimento à recomendação médica, que destituída de um guia de aplicação da vontade além daquela de melhorar a saúde, faz suficiente uma atitude técnica afirmativa do médico sem reticências, sem temperos  de humanização mesmo em torno de má notícia, comportamento que reforça a confiança e a esperança do bom resultado almejado e profissionalmente acenado.

Assim, no interesse pela resolução do caso começa a responsabilidade do médico. Vale dizer, embute uma dose de afetividade por mais que hierarquize o conhecimento técnico e se expresse de modo seco. Nas várias etapas habituais do atendimento a começar pela anamnese, é o diálogo médico-paciente ativo e permanente que guia o equilíbrio técnico-humano, em outras palavras, a conexão entre o ser humano que aplica e o ser humano que recebe que amaina desarmonias em função da participação ativa passo-a-passo do paciente no processo de subsequentes tomadas de decisão. É comportamento que vai moldando ajustes e conciliando significados ao atendimento diagnóstico-tratamento-prognóstico, ou seja, reduzindo a expressão de autoritarismo no uso da técnico-ciência.

Desta forma, o rigor dos argumentos sustentados pelas evidências científicas e vivências profissionais em nexo com o raciocínio clínico objetivando uma boa relação benefício/malefício poderá ponderar suas justificativas com o senso de abertura ao desconhecido, imprevisível e inesperado e com a tolerância que reconhece o direito a contraposições, por exemplo, causadas por ideias, pensamentos e crenças.

Por isso, as diretrizes clínicas com suas dimensões de efeito e probabilidades de certeza são bússolas, nunca algemas que levem a relação médico-paciente para onde não se deseja. Pela conciliação haverá mais chance da visão de coerência, essencial para que o sentido de complexidade venha a ser mantido, para que níveis distintos de realidade tenham suas justificativas expressas e entendidas e para que opostos viabilizem complementaridades. Pois, cada vez mais, a beira do leito assim se apresenta, quer pela evolução natural do caso, quer pela pós-intervenção.

A Bioética da Beira do leito entende que o respeito à pessoa do paciente não deve ser atenuado na tensão pelo sentido de obrigação de empregar todos os meios disponíveis que apresentem boa chance de utilidade e eficácia, mas que, ao mesmo tempo, há várias formas de expressar gentilezas.

 

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