PUBLICAÇÕES DESDE 2014

340- Prescrição de A (ajustada) a Z (zelosa)

Medicamento é coisa séria. É um sal com propriedades medicinais administrado com intuito validado, mas que, uma vez presente no sangue, passa  por todo o corpo com possibilidade de aqui e acolá exercer efeitos indesejados. Para finalidades mais corriqueiras, é justificável que o brasileiro tenha uma farmacinha em casa com alguns produtos isentos de prescrição para alívio imediato de certos incômodos do dia-a-dia, supridos em gôndolas de farmácias, orientados ou não por farmacêutico. Pegou, pagou, levou, tomou, aliviou – ou procure atendimento médico. Hábito em hipocondríacos, ocasional por pessoas acostumadas com certos desconfortos passageiros.

Incomoda-me, contudo, propaganda direta à sociedade para uso mais prolongado do que alguns dias, como é a de suplementos de vitaminas na televisão, pela ilusão de bons efeito garantidos e de nenhuma adversidade, e que nem mesmo costumam provocar efeito placebo relevante, afora a possibilidade de atrasar o reconhecimento de uma fadiga de fato ligada a uma doença necessitada da atenção médica. O assim apregoado situa-se numa zona cinzenta de atenção ao preenchimento do critério da ANVISA  Indicação para o tratamento, prevenção ou alívio de sinais e sintomas de doenças não graves e com evolução inexistente ou muito lenta, sendo que os sinais e sintomas devem ser facilmente detectáveis pelo paciente, seu cuidador ou pelo farmacêutico, sem necessidade de monitoramento laboratorial ou consulta com o prescritor http://www.assistenciafarmaceutica.far.br/anvisa-publica-nova-regra-sobre-os-mips/

Acontece que a suplementação de tais complexos vitamínicos não costuma se acompanhar do devido esclarecimento – que se espera nas situações de prescrição médica para o consentimento- sobre força de evidências científicas para  a individualidade do usuário, que, aliás,  frequentemente, toma outros medicamentos, ou, até mesmo, está deixando de tomar algum prescrito, temeroso pelo que leu na bula. Propagandas desta natureza correm o risco de funcionar como uma anti-bula, reproduzindo em suas concepções de turbinara desempenhos o tipo de comunicação do jingle dos anos 50: Melhoral, melhoral, é melhor e não faz mal. A propósito, o comprimido de Melhoral contém a associação de ácido acetilsalicílico e cafeína, sais associados a vários efeitos adversos.

De qualquer maneira, análises sobre enquadramento ou não de propagandas como enganosa ou abusiva cabem ao Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária, o Conar. Aliás, sob o tema veracidade e falta de comprovação, houve o seguinte parecer do Conar a respeito da suplementação vitamínica:  “… O relator iniciou seu voto lembrando os termos da Orientação de Serviço da Anvisa para suplementos e considerou que elas não foram respeitadas no anúncio em tela. Além disso, citou publicação científica internacional que afirma que suplementos de multivitaminas e minerais são inefetivos para prevenir mortalidade ou morbidade na maioria das doenças crônicas. Seu voto foi aceito por unanimidade…” http://www.conar.org.br/pdf/conar206.pdf.

Apreciações sobre saúde pública e economia popular relacionadas a fármacos exigem um olhar bem mais precedente em relação à fase de mercado e é o que interessa mais diretamente à Bioética. Sabe-se que a maioria de sais testados resta inabilitada para uso humano em alguma das duas fases inicias da pesquisa clínica. Boa parte do contingente que atinge a fase III clínica mostra-se inferior ao já existente quer no benefício, quer na segurança, ou é assim reprovada como um pioneiro, e, por isso, descola-se da condição de investimento promissor. Dinheiro almejado pelo ralo, diriam uns, riscos inadmissíveis para o ralo, dirão outros, pena que não se mostrou útil, diria a humanidade. Pesquisador e voluntário de pesquisa são batedores à frente dos trajetos de promoção da saúde, nem sempre valorizados como benfeitores da sociedade e que, pelo menos, não devem ter os esforços desconsiderados por conflitos de interesse.

É interessante recordar que a proteção da sociedade contra a aplicação de ideias tão brilhantes na teoria quanto sombrias na prática no campo da Medicina por um órgão governamental que filtra a inserção no mercado de fármacos – e produtos de tecnologia em geral- ainda não é um idoso. O respeitado Food Drug Administration (FDA) foi criado em 1962 e no Brasil a atual estrutura conhecida como Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), junto com a definição do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, é ainda um adolescente – amadurecido certamente-, data de 1999.

A validação de novos produtos e de novas indicações para já existentes é um processo exaustivo e que só pode ser protocolado na agência após cumpridos os pré-requisitos. Para a Bioética, o mais importante deles é a conclusão da fase III de pesquisa clínica.

A vivência ensina que legítimas aprovações pela agência não eliminam um certa dose de incertezas que são consideradas aceitáveis na escala da relação benefício-segurança. A certificação não significa garantia de isenção de adversidades, a própria base estatística das conclusões assim sugere e, na fase de mercado, exclusões da concepção do projeto de pesquisa são incluídas e novos resultados acontecem.

O médico precisa adquirir conhecimento e experiência com inovação farmacológica. Não é apenas uma questão de prescrever a dose certa pelo tempo certo havendo a indicação. Cabe-lhe apreciar não somente não indicações e contra-indicações conceituais como peculiaridades do paciente, polifarmácia e aspectos da adesão. Parodiando o jingle citado, prescrição do melhor, o melhor contra o mal – das doenças e de fármacos.

A importância desta cautela reside, evidentemente, na máxima preocupação do médico com a segurança do paciente. Contudo, tem o intuito adicional de lhe apoiar positivamente na eventualidade de um diagnóstico diferencial de iatrogenia.

Iatrogenia, descolada como deve ser de uma representação de erro profissional, significa  causado pelo médico, mas também pode ser  entendida como causado pela Medicina. Assim, ocorrendo uma adversidade a uma inovação, por exemplo, é comum o paciente atribuir à mão do médico, na verdade o agente da Medicina. Sabe-se, entretanto, que a maior parte das iatrogenias, como um efeito indesejado num órgão que não é o alvo da prescrição, está relacionada a imperfeições e a interações dos métodos da Medicina.

Por isso, a prudência na tomada de decisão sobre a prescrição de uma inovação farmacológica na beira do leito brasileira deve repassar por vários pedágios de precaução e que incluem: a) validação da literatura; b) aprovação pela ANVISA; c) pertinência da indicação; d) análise de objeções à indicação técnico-científica por razões de segurança do paciente; e) ajustes de doses, tomadas e período de tempo de uso; f) acompanhamento evolutivo de natureza crítica.

Desta maneira, as fases de a) a e) são de estrita análise pelo médico, inclusive atento a observações da fase IV de mercado na literatura e no âmbito da sua responsabilidade ética e legal. Eventuais faltas poderiam ser classificáveis como iatrogenia do médico. Já a fase f) relaciona-se, per se, à iatrogenia da Medicina.

Nesta importante fase f) o médico não deve ser entendido como causador da adversidade, uma vez – enfatizo- bem cumpridas as anteriores,  quando, então o dano é precipitado ou pelas propriedades farmacodinâmicas do produto, como uma agressão ao fígado, ou por peculiaridades do paciente, como uma alergia. Evidentemente, o médico precisa tomar providências corretivas, muitas vezes, até num ambiente de constrangimento, respirando um clima de entendimentos de erro profissional. Claro, o melhor médico não faz mal, se fez… é pensamento leigo que ronda a beira do leito.

Neste contexto, vale lembrar o valor da figura da beira do leito como sala de aula e a do paciente como mestre. A vivência com a inovação provoca, comumente, o aprendizado de alguns pulos do gato, não constantes nos textos iniciais  e que permitem  fazer alguns acertos de estratégia, o que é conhecido como curva de aprendizado.

A Bioética realça a eticidade do diálogo sincero do médico com o seu paciente, não se esquivando de compartilhar certas incertezas da inovação, colocando a relação médico-paciente no nível possível de parceria, ambos com a mesma intenção e expectativas tão otimistas quanto realistas, em situações de vislumbre de bom prognóstico.

Com tudo isso em jogo, fica difícil engolir, literalmente, entusiasmos de vitaminar a vida cujas dificuldades devem estar muito longe de hipovitaminoses do metabolismo, fármacos pró-alegria quando tristezas precisam ser avaliadas e cuidadas em suas motivações individualizadas.

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