PUBLICAÇÕES DESDE 2014

334- Bioética e proibições enoveladas

A Medicina tem limites. Um deles é a deterioração anatômica e funcional irreversível de um órgão do corpo humano para a qual a realização de procedimento reparador é considerado proibitivo pela coexistência de comorbidades no paciente fazendo pressupor alta probabilidade de um descontrole clínico trans intervenção.

A Medicina supera limites. Exemplo recente é a disponibilização universal da TAVI (Transcatheter Aortic Valve Implantation). De fato, o implante percutâneo valvar aórtico baseado em alta tecnologia e habilidade técnica permitiu que idosos portadores de estenose aórtica grave superem a incapacitação da doença evitando proibitivos efeitos anestésico-cirúrgicos.

A Medicina tolera limites. A contemporaneidade respeita o não consentimento pelo paciente/representante à aplicação de método diagnóstico e/ou terapêutico associado a uma chance válida de benefício.

A Medicina não tolera limitações. Há mais de três anos, a CONITEC (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias), órgão da sociedade com função de válvula que abre ou fecha a condução de inovações para a beira do leito decidiu recomendar a não incorporação do implante por cateter de bioprótese valvar aórtica, a TAVI, no SUS  http://u.saude.gov.br/images/pdf/2014/janeiro/30/TAVI-FINAL.pdf.  A plenária entendeu por unanimidade que: a) existe um benefício; b) não há estudo que comprove a sobrevida; c) há a gravidade da doença; d) as evidências são incertas; e) há risco de AVC; f) há risco de morte durante o procedimento; g) chance de  complicações renais; h) alto custo da tecnologia – Registro de Deliberação nº 73/2013.

Constituiu-se, então, um cenário da beira do leito SUS onde elegíveis para o procedimento segundo critérios originais validados internacionalmente ficaram associados a três proibições, duas pela doença – ter boa qualidade de vida e beneficiar-se de um procedimento cirúrgico clássico- e uma pelo sistema de saúde – resgatar a qualidade de vida. Certamente, muitos procedimentos disponíveis pelo SUS para atenção terciária comungam a maioria dos argumentos acima.  É desnecessário, por obviedade, ressaltar que inexiste benefício da Medicina perante uma gravidade da doença (itens a e b) sem quebra da segurança biológica do paciente (itens e, f g), o que está na base de sustentação do direito à autonomia pelo paciente em face ao progresso técnico-científico. Os registros multicêntricos da época já comprovavam a legitimidade do uso, rejeitavam qualquer conotação de abuso de autoridade médica e ilustravam a validade de se passar pelos riscos para usufruir do sucesso majoritário da TAVI.

A questão ética na beira do leito atual é que a inovação já amadurecida, validada pelas Sociedades de especialidades, constante em diretrizes clínicas brasileiras, quando aplicável, deve ser apresentada ao paciente/representante. Considerando mais uma proibição, é vedado ao médico deixar de informar ao paciente em questão que inexiste opção terapêutica, silêncio que seria uma regressão perversa ao século passado, até porque o Dr. Google está de plantão 24 horas por dia, sete dias por semana. E engatando mais uma proibição, a indisponibilidade do método no Serviço não pode anestesiar a consciência profissional, é essencial que prevaleça a objeção a não revelação. Em outras palavras, na atualidade do saber da Medicina a comunicação sobre TAVI ao paciente deve prover clareza sobre benefício e segurança, despertar expectativas sobre prognóstico e facilitar a deliberação sobre o consentimento à semelhança do efetivado para o esclarecimento do rotineiramente disponível. O abismo está entre a Medicina e o sistema de saúde, médico e paciente devem postar-se em uníssono com a Medicina.

A Bioética da Beira do leito entende que a beira do leito SUS não deve estar desconectada daquela associada à Saúde complementar quando o exercício da prudência na tomada de decisão direciona para a escolha de um benefício vantajoso em termos da segurança do paciente perante alto risco tanto de fazer como de não fazer.

Uma das realidades do envelhecimento da população como é a tendência brasileira é que os idosos frequentemente são submetidos a intervenções cirúrgicas em semanas precedendo o óbito, período em que ficam internados por tempo prolongado em Unidade de Terapia Intensiva. Por isso, a opção de um percentual expressivo de pacientes com má qualidade de vida e enfermidades avançadas pela aplicação de tratamentos com menor agressividade mórbida para seus casos. Esta postura materializa-se na escolha pelo paciente por métodos mais sintomáticos, pela paliação, ou, sempre que possível, pelo consentimento livre e esclarecido a uma inovação que passa a permitir uma admissível relação benefício/segurança.

Passados cerca de 40 meses do parecer da CONITEC, os registros globais da TAVI indicam que a inovação já caminha para a condição de rotina, inclusive com expansão para casos não cirurgicamente proibitivos, ou seja, tendência a se tornar uma alternativa e não única opção da circunstância. Enquanto isso, o Brasil testemunha a Sociedade Brasileira de Hemodinâmica e Cardiologia Intervencionista e a comunidade cardiológica de modo geral empunhando a bandeira da incorporação do implante por cateter de bioprótese valvar aórtica no SUS com o seu dístico É proibido proibir, inclusive porque a técnica de reparação valvar transcateter já atinge outros objetivos terapêuticos em doença valvar. O quadro apresenta um resumo de envolvimentos e realizações em prol da mudança de entendimento da CONITEC gentilmente elaborado para o blog bioamigo pelo Dr. Marcelo Antonio Cartaxo Queiroga Lopes atual Diretor de Avaliação de Tecnologia em Saúde da Sociedade Brasileira de Hemodinâmica e Cardiologia Intervencionista e seu Presidente na gestão 2012-2013, portanto na época do parecer da CONITEC, e que desde então tem sido incansável batalhador e líder pela causa.

conitec

A boa vontade de gestores tem permitido aplicações de TAVI em pacientes SUS contornando o item h acima referido, que talvez seja o xis prevalente da proibição. Mas a lacuna da disponibilização oficial trouxe a inclusão judicial no processo de tomada de decisão. A Bioética da Beira do leito enxerga especificamente a judicialização da TAVI como um recurso da sociedade ditado pelo entendimento que está ocorrendo algum tipo de negligência e, assim, apela para o zelo do Judiciário contra o niilismo. É aliança do Estado com o de fato útil e eficaz segundo critérios de inclusão e exclusão analisados por um time multiprofissional e interdisciplinar acerca do cumprimento dos pre-requisitos clínicos numa situação especial onde se objetiva  respeitar o consentimento do paciente dado à recomendação médica que não pode ser validado pelo sistema público de saúde. Enfatize-se que não ocorre nem modificação da decisão do médico nem contradição à consciência do médico sobre direito do paciente e responsabilidade profissional.

Em suma, se é verdade como já se disse que a vida pune o idoso, também é verdade que Medicina procura amenizar os efeitos do desgaste biológico, até se espera a contribuição da engenharia genética. A conexão médico-paciente é um agente da Medicina para sobrepujar limites impostos pela enfermidade inserida no sistema de saúde que idealmente deve evitar limitações ao estado da arte. A Ética  dá subsídios para  comportamentos que giram em torno de composições da tríade proibição (ao abuso ou ao fútil), inação (em nome da segurança ou em decorrência de negligência) e ineficácia (absoluta por inferioridade científica ou relativa pela individualidade do caso). No caso da TAVI pelo SUS, em que esta tríade mostra-se pelo lado da permissão, ação e eficácia, estamos otimistas que logo prevalecerá um olhar interdisciplinar na CONITEC do jeito que tem sustentado a expansão mundial  da bioética, que venha a suavizar a vida para idosos com possibilidade de agregar ao seu longo passado de sobrevivência um futuro de vitalidade.

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COMENTÁRIOS

Uma resposta

  1. Belíssimo texto! De muito valor na luta pelos direitos do idoso! De muito valor na luta do médico por incorporação de tecnologias que realmente trazem beneficio aos pacientes!

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