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285- Bioética, o tempo e o raciocínio clínico: o imaginado e a imagem

tempoHá fundamentos indispensáveis no exercício da Medicina. Um deles é a obtenção da anamnese e a realização do exame físico.  Quando estas etapas traducionais são puladas e passa-se ao hábito de fazer um simples copy-paste do laudo da conclusão de um exame de imagem para o campo do diagnóstico clínico, aumenta a chance de conclusões equivocadas total ou parcialmente.

A explicação é clara: o exame é adjetivado como complementar – por quatro tipos de informação, reunidas no acrônimo DICA (Quadro)-, portanto precisa ser apreciado em consonância com hipóteses geradas no principal da anamnese e do exame físico.

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Percentual de desacertos tornam-se alegação de erro médico por infração ao art. 1º do Código de Ética Médica vigente: causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência.  É eventualidade onde anamnese e exame físico anotados no prontuário do paciente são itens essenciais para dar início a juízos de natureza ética e legal.

Se anamnese e/ou exame físico inexistirem como memória do atendimento ou estiverem formatados como “telegrama” – mais modernamente, como mensagem de texto num aplicativo-, configura-se omissão e evidência desfavorável ao sentido de zelo e de prudência do médico. Uma razoável anotação, mesmo que não necessariamente signifique adequadas exatidão, completude e interpretação, costuma caracterizar a disposição de correção profissional com estes quesitos essenciais.

Já a revisão num fórum ético de exame complementar, como de imagem, conta com a possibilidade de resgate da gravação, da análise de fotos e da inspeção do laudo. O “congelamento” do momento do complemento facilita a verificação de adequação da captação, da completude e da interpretação, diferente do verificável para a anamnese (disposição variável para informar) e para o exame físico (mutável pela evolução).

Os impactos éticos destas diferenças reforçam que a busca do acerto médico, em contraposição a erro médico, não tolera omissões no passo-a-passo clássico do diagnóstico, útil para a maioria das situações clínicas, e que serve de sustentação habitual para a eticidade da conduta terapêutica e da projeção do prognóstico.

É ilustração costumeira do ato médico o posicionamento do responsável pelo caso entre o paciente de quem conhece por sua única atuação a anamnese e o exame físico e o colega/Serviço responsável pela complementaridade- em imagens, na presente consideração. A figuração entre a clínica soberana e a imagem poderosa.

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Na eventualidade de surgirem divergências que de fato influenciem a tomada de decisão, as dubiedades precisam ser desfeitas- nem sempre perfeitamente possível-, o que demanda confiança tanto na experiência própria (vivência de clínica soberana + exercitação da própria integração complementar), quanto no laudo, bem o re-exame com visão ciclópica dos componentes do passo-a-passo em geral. Lápis e borracha ativos como instrumentos metafóricos de apuro ético.

As vantagens de um time, onde cada um dá a sua contribuição específica em meio a uma visão expandida e profunda das circunstâncias e das questões mais relevantes, costumam ocorrer em ambientes hospitalares ligados ao ensino ou estruturados com visão “mais acadêmica”.

Distintamente do médico que utiliza um fio condutor que perpassa uma equipe conhecida, há o médico “solitário”, um herói nos dias de hoje, que longe de times, Serviços e hospitais mais bem ranqueados, levado pelas circunstâncias a ser conformar com realidades profissionais que não lhe arrancam suspiros de boa emoção, almeja atingir o quanto possível de excelência – se é que ela pode ser fatiada em níveis-, em meio a limitações de trabalho.

Este médico”solitário” procura fazer o melhor de si pelo paciente, ele luta em nítida desvantagem contra o contexto de anti-Medicina ética alertado por alguns artigos do capítulo Direitos dos Médicos do Código de Ética Médica vigente: “apontar falhas”, “recusar-se a exercer”, “suspender suas atividades”. Como se sabe, há dificuldades práticas em  cumprir estas recomendações éticas.

Nem sempre, todavia, a relação médico “solitário”-paciente é bem-vista pela sociedade e por colegas. De fato, ela pode admitir diversas interpretações sobre qualidade. Entendo, não obstante, que,  majoritariamente, médicos “solitários” apresentam a vontade de tratar o ser humano com civilidade e consideração, respeitar sua dignidade e não discriminá-lo de qualquer forma ou sob qualquer pretexto (conformidade ao art. 23 do Código de Ética Médica vigente).

A Bioética da Beira do leito é de opinião que independente de características pessoais e da formação profissional e de aspectos estruturais incidentes no atendimento, médicos comportam-se “solitários”, embora não estejam isolados, em função da variável chamada tempo. Há evidências que se tornar contumaz solicitante e receptador de laudos de imagem em associação a carência de raciocínio clínico embasado por apropriadas coleta de anamnese e realização de exame físico em distintas especialidades é inadequação ética a ser creditada à exiguidade de tempo de consulta/atendimento.

William Bart Osler (1849-1919) ensinava que o médico não poderia prescindir da contemplação após anamnese, ausculta e palpação. Esta concentração mental  se indevidamente desviada do raciocínio clínico para a conclusão do laudo da imagem, se não representar uma devolutiva resposta qualificada pelo complementário poder da imagem à formulação de hipóteses clínicas, torna-se indesejável contemplação de imagem, que pode atingir mesmo um nível de “atração fatal” para o ato médico ético.

O que acontece com frequência é que a distância de reciclagens tanto pelos contatos  cotidianos mais qualificados, quanto por cursos de atualização vai perpetuando no médico “solitário” a dissonância representada pela exaltação de exames, como os de imagem, uma “terceirização” que acaba ofuscando a  percepção do mau emprego do tempo. Na verdade, não é o médico “solitário” que não tem tempo, é o tempo que o domina.

A Bioética da Beira do leito alerta ao médico que representa um simples meio de passagem de informações de diagnóstico que não são por ele minimante “metabolizadas”, que o resgate do tempo útil – para o paciente e para si-de atendimento é imperioso.

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