A memória é um processo dinâmico de codificação, retenção e recuperação. Ela fundamenta a identidade e pode estar emocionalmente bem-adaptada ou mal-adaptada. Síntese e incorporação de proteínas promovem a passagem da informação do estágio de memória recente para o de memória tardia, o que é denominado de consolidação.
A Medicina e a Psicologia sabem bem o quanto bendizemos certas lembranças e maldizemos outras armazenadas. Memórias malditas são terríveis e influenciam negativamente a qualidade de vida. Desejamos nos livrar delas, rituais de desculpas são alívios para a convivência com efeitos deletérios no cotidiano.
Há cerca de um século, o médico russo Ivan Petrovich Pavlov (1849-1936), prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina de 1904, revelou o chamado reflexo condicionado. Ele trouxe uma luz de explicação científica para a argúcia sobre a vida captada pelo escritor francês Michel de Montaigne (1533 – 1592): Nada fixa algo tão intensamente na memória do que o desejo de o esquecer.
Sem dúvida, todos nós guardamos experiências que desejamos passar uma borracha na memória pessoal. Episódios do passado com representações desagradáveis impactam no presente e parecem que assim persistirão no futuro. Há uma sensação de estar refém da amarga recordação, como se reproduções da causa-efeito fossem inevitáveis.
Ilustro com a história de um garoto de 9 anos de idade que indo a pé e sozinho para a escola é surpreendido por uma chuva no meio do caminho e lá chega literalmente ensopado. Meia hora depois, ele é severamente repreendido – Porque não se abrigou? Quer ficar doente?– pelo pai chamado para levar uma nova muda de roupa. Ficou uma impressão que era incompetente para enfrentar sozinho uma situação sobre a qual não tinha controle. Uma década depois, o já adulto jovem teve perda total do seu primeiro automóvel recém-adquirido por uma enchente durante chuva torrencial. A partir daí, estabeleceu-se uma memória mal-adaptada específica desencadeante de medo e de ansiedade, resultando em programações de horários de trânsito altamente condicionadas a previsibilidades meteorológicas. Chuva forte passou a ser entendida como ameaça e necessidade de abrigo seguro.
No âmbito da psicopatologia, uma questão é recorrente: A memória que faz sofrer pode ser editada? Há respostas afirmativas. Já existe o conhecimento acumulado sobre o efeito positivo de intervenções de natureza comportamental. Estuda-se o uso de fármacos como agentes de modificações sobre a base proteica da consolidação da memória e com efeitos de reconsolidação sobre memórias fortemente arraigadas, resultando numa reconfiguração pré-fobia.
Objetiva-se clinicamente exercer alguma forma de inibição sobre o desenvolvimento de sofrimentos emocionais, como os ligados aos Distúrbios pelo Estresse Pós-Traumático (PTSD na sigla em inglês). Uma droga antiga e de uso em doenças cardio circulatórias, o propranolol, tem sido estudada em relação à neutralização de maléficas memórias autobiográficas relatadas em narrativas pessoais. Lembro-me que década de 90 do século passado, a Unidade Clínica de Valvopatia do Incor em conjunto com o Departamento de Psiquiatria da FMUSP estudou a relação entre prolapso da valva mitral e síndrome do pânico e concluiu que a administração de propranolol era útil e eficaz.
Tais possibilidades de influências em comportamentos humanos são de interesse da Bioética. É universal que usos validados podem gerar abusos com linhas de corte obscuras e que benefícios acompanham-se do potencial de adversidades. Neste contexto, é preciso ficar atento ao nível de segurança individual e coletiva associado a intervenções anti-fóbicas. Ausência do medo cautelar pode não somente acarretar imprudências, desinibições e irracionalidades mesmo, como também servir para atos criminosos per se ou induzidos por outrem.