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245- Paternalismo, autonomia, consentimento e confiança

Os médicos desejam fazer o seu trabalho. Eles gostam. São cerca de 400 mil brasileiros que se propõem a orientar e a praticar em face dos casos e dos descasos. Eles foram treinados, estão habilitados, são rigorosos com os recursos, padecem com carências de infra-estrutura. Veem-se em constante curva de aprendizado. Exceções confirmam a regra.

Quando o paciente se apresenta, os médicos direcionam pensamentos e conhecimentos a respeito de dados e de fatos já identificados e compõem estratégias de atuação que, paulatinamente, vão ajustando de acordo com informações e circunstâncias evolutivas. Prudência e zelo formam  o capital ético dos mesmos.

Um ajuste  refere-se ao direito do paciente à autonomia. É pedágio moral. Alicerce relevante da Bioética da Beira do leito. Esta conquista social está ligada ao caráter individual da conexão humana nos atendimentos às necessidades de saúde. Mesmo CID, infinitas composições humanas da relação médico-paciente. Diabetes e diabético, teoria e prática, compõem-se em feedback, o saber sobre diabetes capacita à clínica do diabético, esta dá sabedoria para aperfeiçoamentos técnico-científicos sobre a doença. A boa reputação da beira do leito dos nossos dias  requer crédito à diversidade  da condição humana.

Ultimamente, autonomia tornou-se antônimo de paternalismo, o que parece ser um reducionismo. Há o paternalismo forte – impositivo- e o paternalismo fraco- orientador. Diz-se que há paternalismo forte do médico quando ele pretende executar – ou executa-, apenas a sua maneira, métodos diagnósticos e/ou terapêuticos, sem nenhuma consideração sobre o posicionamento do paciente acerca da aplicação. A prática pode estar até acontecendo do modo técnico-científico correto dentro do estado da arte, porém, a inobservância da solicitação de consentimento livre e esclarecido pelo paciente – um vulnerável sempre- arrisca-se ao entendimento de infração a artigos do Código de Ética Médica vigente.

Assim, na moderna relação médico-paciente, condutas de uma boa Medicina recomendáveis e aplicáveis pelo médico precisam tornar-se condutas consentidas pelo paciente. É comportamento visando ao respeito a direitos humanos. Muitos acham mesmo que o consentimento formal e esclarecido do paciente traz dificuldades logísticas na pesada atmosfera de um sistema de saúde congestionado. Todavia, não é desejável optar pelo silêncio do paciente para impedir interrupções do “paternal necessário fazer”, como acontecia num outrora não longínquo.

Então quer dizer que o paternalismo deve desaparecer da beira do leito? Nem tanto ao céu, nem tanto à terra. A tal máxima que a teoria na prática é diferente vale neste contexto. Assegurar direitos é preciso, mas salvaguardar deveres também.

O paciente pode se recusar, pode desejar que seja feito a seu gosto, mas, o médico tem que avisar que, assim fazendo, elevam-se os riscos de insucesso a curto ou a longo prazo. Um não do paciente, é verdade, trava o médico num clima de acentuação da responsabilidade do paciente pela recusa autonômica. Um não do médico ao desejo do paciente impossível de ser compartilhado, por sua vez, tem o potencial de manter a sua disposição para perseverar pelo mais adequado a ser feito. Dispor-se a não desistir fácil pelo bem do paciente segundo a óptica da Medicina é atitude que admite um cunho paternalista por parte do médico prudente e zeloso. Então, paternalismo e autonomia não são exatamente antagônicos.

O domínio da autonomia não significa, pois, eliminação do paternalismo. Há um vigor de tradição relacionado ao dever hipocrático do médico de cuidar do paciente. Novos tempos, novas maneiras de profissionalismo respeitoso ao momento da sociedade em que cabe conservar aplicável uma vertente bem intencionada do paternalismo.

Na verdade, a ascensão da autonomia, em grande parte impulsionada pela conscientização que era preciso prevenir abissais desníveis de poder entre médicos eticopatas e pacientes vulneráveis, tragicamente ocorridos em época não muito distante, em nome da Medicina, restringiu o paternalismo forte a situações de emergência. Especialmente, quando o atendimento emergencial é totalmente inesperado, um acidente com gravidade clínica, por exemplo, em que não fazer por falta -ou mesmo impossibilidade- de consentimento pelo paciente configuraria negligência profissional. Já quando pode-se supor uma morte iminente durante um processo evolutivo que está sendo acompanhado de perto medicamente, polêmicas surgem. É o caso de um paciente da crença Testemunha de Jeová que evolui mal e onde a transfusão de sangue não aplicada em respeito à religiosidade traz a dualidade de inequívoca esperança clínica de reversão do mau prognóstico e de violência a valores do paciente. Por outro lado, a situação de terminalidade da vida passou a admitir a ortotanásia, o que significa desestímulo a um paternalismo de futilidade.

E o paternalismo fraco? Lembra da postura tão comum no dia-a-dia de não se aceitar um primeiro não? Pois é, conduzir-se com paternalismo fraco é persistir na recomendação que não foi inicialmente consentida pelo paciente, porque o médico mantém-se esperançoso que canais de consentimento poderão se abrir.

É comum que insistências sem nenhuma dose de coerção, utilizando acolhimento, esclarecimento e tempo como matérias prima, desemboquem num consentimento. Ou seja, o paternalismo fraco praticado pelo médico é “amigável” com a autonomia a ser respeitada no paciente. Eles podem andar juntos durante algum tempo sem nenhuma inadequação ética.

Creio que a verificação de uma estatística de casos apontaria uma maioria das recomendações que o médico dá ao paciente aceita pelo mesmo sem contestações, pequenos ajustes no máximo, ciente que “o doutor sabe o que preciso fazer“. Nesta maioria inclui-se um percentual  em que o consentimento dado expressa modificações de objetivos, valores, preferências e/ou desejos do paciente tidos até então, ajustes conformados ao momento clínico que se vivencia.

É lícito, pois, considerar que mudanças nos fundamentos individuais da autonomia podem ser creditados a uma prevalência do paternalismo fraco do médico, em que o paciente acomoda-se para se identificar com um sim, mesmo nada satisfeito com a decisão, uma internação hospitalar, por exemplo, eclodida da noite para o dia num paciente que costuma evitar qualquer entrada em hospital como acompanhante ou visita. Quando o corpo pede, a mente providencia.

O crédito de confiança na palavra do médico numa situação de sofrimento é responsável pelo consentimento tão capaz quanto “a contragosto”, o que é muito mais habitual do que se pensa, pois nem sempre transparece para o médico. Faz parte, todavia, a vivência com conflitos da beira do leito indica que tais contragostos  ficam latentes e com potencial de sustentar insatisfações em situações de má evolução clínica.

Assim, a beira do leito brasileira, multicultural e pluri-étnica, não é Paternalismo Não x Autonomia Sim. Ela admite uma composição de elementos que pode ser vista como uma tétrade de legitimidade da relação médico-paciente – autonomia, paternalismo, consentimento e confiança. Entrelaçamento que sem repudiar a tradição hipocrática, aprova o direito do paciente de participar ativamente do processo de tomada de decisão sobre a sua própria saúde.

De fato, não é indevido olhar cada caso de consentimento pelo paciente tanto pelo ângulo do exercício do direito de autonomia pelo paciente quanto pelo ângulo do exercício do paternalismo fraco pelo médico que se dispõe a dialogar, tirar dúvidas, esclarecer, enfim, colocando o seu poder profissional não acima, mas a serviço do interesse do paciente. Assim, a interpretação do termo paternalismo fraco na beira do leito está mais para o pai “amigo do filho”, sensível a seus pontos de vista e menos para uma figura patriarcal, autoritária, impositiva que vislumbra a supremacia da Medicina sobre a individualidade da pessoa.

É notório como a existência de confiança no médico pelo paciente facilita a mixagem entre paternalismo fraco e autonomia. Por isso, é essencial ter em mente que eventual não consentimento por parte do paciente não significa num primeiro momento um descarte sumário da recomendação do médico.

Em nome do zelo e da construção da confiança por palavras ou por atitudes, a Bioética da Beira do leito entende que o médico deve insistir diante de um frustrante não preliminar. Como se sabe, não faltam razões humanas para que o paciente vá a nocaute emocional ao receber má notícia – para ele- diagnósticas e/ou terapêuticas. Sendo boa notícia para o médico, ou seja, que há chances de sucesso, é fundamental que o médico tenha tempo para procurar convencer. Evidentemente, a disponibilidade de tempo, paciente a paciente, escasseia cada vez mais.

A beira do leito não deve, em princípio, resignar-se a um não sumário do paciente. Deve prevalecer o entendimento que o consentimento é um processo visando, idealmente, a conciliação de pontos de vista diferentes.

 

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