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224- Confidência do sintoma a si próprio e ao médico

O sintoma liga o paciente ao médico. É verdade relativa que depende da interioridade do sintomático. Pois a subjetividade impera.

O sintoma pode permanecer naquele espaço íntimo de todos nós trancado a 7 chaves. Confinamento que facilita  desvalorizá-lo como “um nada passageiro”. Os afazeres do cotidiano costumam representar cadeados. A falta da determinação para a revelação do sintoma pelo medo do diagnóstico que possa advir, também é tranca segura.

O médico envolve-se quando o sintoma provoca a anamnese, quando transparece numa expressão verbal ou corporal. A conexão ocorre em tempos variáveis desde o início do sintoma, o que pode vir a ser fator relevante no prognóstico. Proximidades ou distanciamentos do início do sintoma são multifatoriais, dependem do andamento dos movimentos internos – desejo ou não- ou dos movimentos externos- sistema de saúde. A mistanásia – falta da oportunidade pelo atendimento médico- é extremo, simboliza a eternidade do sofrimento que desrespeita o princípio da equidade.

Sintoma revelado é trilha do diagnóstico diferencial. Sintoma revelado pode ser  da hipocondria. Sintoma revelado pode ser capricho da síndrome de Münchhausen.

Sintoma não revelado pode fazer descarrilhar a condução clínica. Sintoma não revelado pode esconder não adesão a tratamento. Sintoma não revelado pode dar um ar de surpresa para um acontecimento súbito.

Sintoma revelado ou não revelado pode, pois, ser matéria-prima de uma mentira. Paciente mente?  Sim! A decisão de mentir lhe dá liberdade para dizer o que deseja e caso fale a verdade poderia resultar contrariado.

Nenhum médico com o mínimo de experiência pode negar que há pacientes que mentem. Muitas vezes constatou, por outras suspeitou fortemente. A verdade do sintoma, quer qualitativa, quer quantitativa, pode nunca aparecer, ou, então, acontece no decorrer do atendimento, tanto porque ficou difícil esconder frente ao desenrolar dos fatos, quanto porque ficou fácil dizer ante o desanuvio de bloqueios temerosos do diagnóstico finalmente identificado como normalidade. A notória verdade que funciona como um post scriptum à conclusão  emocionalmente aliviadora.

Questão da Bioética é o limite da atuação do médico em busca da veracidade das informações desde o paciente. O quão insistente ele deve ser na certificação da anamnese. O quanto de recursos técnicos ele deve empregar para esclarecer uma percepção que, por exemplo, “é impossível que não haja sintomas”. Em Cardiologia, a gravidade de determinados diagnósticos tende a criar hesitações sobre a  veracidade da revelação de sintoma, criando dilemas sobre a aplicação de terapêutica que tem no sintoma  a indicação validada.

A Bioética reforça que liberdade de pensamento não significa exatamente liberdade de atuação. O médico pensa no benefício e o não desejo do paciente pode obstruir a aplicação. O já conhecido confronto entre os princípios da Beneficência e da Autonomia. Ou, o conflito entre utilidade/eficácia universais e preferência/valores pessoais.

É comum que quando apresentamos esta dualidade fundamental da Bioética a uma platéia, ocorra a observação pelos mais jovens: Mas é difícil o paciente recusar-se a cumprir a nossa recomendação! Certíssimo. O que importa é que seja dado ao paciente liberdade para exercer o direito de não consentir. A garantia à escolha pode representar um diálogo tão breve quanto 1-2 minutos, mas a indispensabilidade  decorre, justamente, da pluralidade da condição humana que  dá existência a quem prefere outros caminhos.

O consentimento é item adicional ao check list técnico-científico da beira do leito no processo de tomada de decisão? Certamente é. Faz parte de diagnósticos diferenciais e planejamentos terapêuticos? Certamente sim. Ele faz assinalar o que poderia ser uso e o que poderia ser abuso para aquele paciente em questão. Porque o médico que aplica injustificadamente sem o consentimento do paciente torna o ato médico ilegítimo para a circunstância, não importa a legitimidade disciplinar. Abuso porque será interferência indevida na relação eu-comigo mesmo do paciente. Uma afronta ao livre-arbítrio, salvo em iminente risco de morte. Mesmo se for a seleção pelo paciente de uma rota destinada inexoravelmente ao mau prognóstico.

Qualquer lida de arqueologia sobre Bioética verificará que a profundeza está constituída por camadas de oposição a graves abusos da dignidade humana ocorridos no século XX que foram se superpondo à medida que normatizações foram sendo criadas. A minha resposta à observação acima dos mais jovens é que eles têm razão na estatística, mas que cumpre à Ética ser a vigilante da beira do leito contra abusos assim rotulados de modo personalíssimo pelo paciente, muitos deles usos validados pela Medicina e executados rotineiramente. Nada parecido com os horrores das camadas profundas, entretanto essencial ao exercício atual da cidadania. A predileção pela técnico-ciência  idealista do médico versus a realista atenção à vontade do paciente.

Mas que fique claro: a consideração que a contraposição será um abuso do médico deve vir como manifestação de “desejo final” do paciente. A  síntese que não admite a coerção profissional, não importa o teor -até com impressões digitais coercitivas, porque não- de influências sobre o íntimo do paciente que não restam auto-evidentes, porventura havidas no âmbito pessoal, familiar e trabalhista. Afinal, quando os medos da condição humana pretendem se impor, “segundas opiniões” da crença, do familiar e do bolso realizam amenizações da sensação de ameaça. Há conscientização que deixar de fazer um procedimento para não enfrentar riscos biológicos não é uma questão de prudência ante um perigo, pois, ao contrário, o perigo é a doença. Amenização e não extração do medo porque a coragem resultante é um processo de lapidação de processos interiores que não visa à eliminação do medo em si, mas à animação da potência humana para ir adiante apesar do sentimento de perigo. Neste contexto, é interessante observar que o medo do paciente costuma ser tratado superficialmente pelo médico, a expressão de empatia restando influenciada por objetividades da relação risco-benefício e de subprodutos da Medicina Defensiva.

Ah! Então o direito à autonomia pelo paciente é um componente da deliberação que se conjuga com deveres executivos por heteronomia?  De certa forma, sim!  A prática está estruturada no poder de uma dar sustentação à outra, qual duas cartas de baralho em pé. Mas há peculiaridades neste amparo mútuo. Idealiza-se a heteronomia do Código de Ética Médica assegurando explicitamente a autonomia enquanto que o Sim doutor! subentende o recebimento qualificado de uma quantidade de heteronômicos componentes não objetivados nos esclarecimentos – doses de fármacos, tipo de fios de sutura, número de vezes em que a pressão arterial será medida. Um confiante “cheque em branco” dado pelo paciente para preenchimento pelo médico com as mãos guiadas pela consciência ética.

A compreensão ao estilo da Bioética é que o compartilhamento de vontades- desejo+ação- entre médico e paciente dá potência ao ato médico por esta junção muito peculiar que ocorre na beira do leito entre a autonomia e a heteronomia. O consentimento estabelece autoridade tripartite – médico, Medicina, paciente-, fundamentada na prudência que incluiu o Sim doutor! pelo paciente ao Sim Medicina pelo médico e no zelo para fiel cumprimento do acertado.

Direito à autonomia, soberania da técnico-ciência. A conduta recomendada ampliada para recomendada-consentida e exigente de recomendada-consentida-executada.  Só o médico – e equipe- pode praticar, só o paciente pode ser autorizar, só a Medicina pode conduzir o sintoma ao tratamento, só o guarda-chuva da Ética pode abrigar as vulnerabilidades contra as intempéries do abuso.

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