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201- Tornar-se paciente inclui fazer escolhas imaginadas

O fato existe. Um voluntário de pesquisa sobre medicamento, algum tempo depois lê a bula do mesmo já aprovado e recusa-se a usá-lo. Sai cada cabeça, uma sentença e entra cada momento, uma sentença. Não que o indivíduo seja exatamente um volúvel, mas é que ele oscila na mentalização da representatividade de tomar um comprimido – será benéfico, será maléfico- em relação à  probabilidade de acontecer, sob influência de fatores de controle sobre seus desejos, preferências e decisões.

Um consentimento para o pesquisador, um não consentimento  para o prescritor. Uma curiosa avaliação de risco para a saúde mais flexível para o ultra desconhecido do que para o já razoavelmente conhecido. Um foco na esperança de inovação benéfica para  a humanidade distinto do da expectativa de utilidade para si.

O indivíduo aceita doar o seu corpo para a experimentação desde que submetido à supervisão alheia – leia-se pesquisador- na qual deseja confiar. Ele fornece os dados e os fatos procurados  sobre os quais não faz nenhum juízo científico. Ele não participa da conclusão sobre benefício e sobre segurança.  Na eventual aprovação  pela ANVISA, este voluntário é tão-somente um número de ordem perdido entre os demais.  Quando, subsequentemente, agora na identidade de paciente que recebeu uma prescrição, ele faz nova apreciação da relação risco-benefício, ele exerce um poder de decisão que, aliás, fica, habitualmente, oculta do prescritor, diferentemente do que acontece em relação ao pesquisador.

Termo de Consentimento Livre e Esclarecido contém uma série de dúvidas em antecipação à bula exigentes da declaração de intenção de ser voluntário. A bula, por sua vez, admite o auto-consentimento, obviamente livre e esclarecido numa medida difícil de se saber e associada a potencial de vieses cognitivos favorecedores da não tomada do medicamento. Sob a luz da Ética, ambos são documentos sinceros e com simplificações sem reducionismos para o chamado paciente cognitivamente médio.

Embora compartilhem intuitos análogos, resumíveis como prós e contras, eles parecem provocar sensações distintas e, até passíveis de apreciação como paradoxais. De fato, o papel de conhecimento obrigatório bem arrumado numa prancheta em busca da boa vontade de um voluntário pode suscitar um otimismo, um desejo de uso, uma ideia de ganho não igualados frente o papel bem dobrado numa caixinha com leitura não obrigatória pelo paciente sobre boas e más perspectivas.

Uma distinção é que o Termo- presume-se eticamente-  é dialogado com o voluntário e, nesta interação, o poder presencial do pesquisador tem destaque. Não exatamente coercitivo, mas de certo modo impositivo. Já a bula é não presencial com o prescritor, cujas possíveis palavras sobre adversidades associam-se, habitualmente, à ênfase menor em relação as justificativas sobre benefícios, e, inclusive, podem até nem terem sido retidas. E no momento da leitura da bula, quando o paciente está sozinho, selecionando o que deseja saber instado a precaver-se de iatrogenias, esforçando-se diante de letras nada amigáveis, a visão de futuro sobre “tudo aquilo que pode acontecer de desagradável” pode suplantar àquela oposta e esperançosa do “agradável benefício”, da estima em “estar engajado” num projeto humanitário, por ocasião da participação na pesquisa.

Evidentemente, o cidadão-voluntário e o cidadão-paciente são seres humanos sujeitos às circunstâncias. Há mais voluntários de pesquisa captados dentre os pacientes da instituição a qual estão afetivamente ligados do que advindos de fora. O ambiente institucional é fator de adesão do voluntariado em pesquisa, assim, como já comentamos em outro post, que o paciente internado não costuma recusar o mesmo comprimido dado pelo enfermeiro que não toma ao ler a bula em casa. O quanto ele de fato está “livre de vieses à liberdade” no processo de decisão é questão recorrente.

Neste aspecto, a desconstrução da receita médica pela leitura da bula pelo paciente em domicílio funciona no inverso. A insistência, o contraponto, a ponderação por atuação de um profissional que está capacitado a esclarecer em termos qualitativos e quantitativos não ocorrem simultaneamente ao desenvolvimento progressivo da preocupação com as reações adversas monotonamente listadas. Há um solilóquio que menos refratário a vieses produz probabilidades de efeitos de acordo com o que o paciente consegue mentalizar em função de vivências, analogias, imaginações, e, que, em muitos casos, prosperarão para uma decisão de não se arriscar a sofrer algo que  resultou entendido como mais desconfortável do que o motivo da prescrição beneficente e do que as consequências da não utilização.

Tais considerações alertam que há momentos em que o cidadão vê-se à vontade para  que a escolha seja de fato superposta a suas preferências e a seus desejos, planeja para tal, a chamada efetiva autonomia, e há momentos em que ele prefere um paternalismo – idealmente fraco pois com porta aberta para a Autonomia e sem nenhuma intenção de coerção- a que se sujeita para aliviar o peso individualizado sobre os ombros da responsabilidade pela tomada de decisão num clima de incertezas.

É assim que devemos ler o art. 24 do Código de Ética Médica vigente: Que se garanta ao paciente o exercício do direito  (grifo nosso) de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar. O que não significa nem vedação à insistência respeitosa, nem imediata tolerância a opiniões contrárias. Ou seja, se o processo de tomada de decisão objetiva o interesse do paciente, a neutralidade absoluta do ser médico é difícil, pois como não deve lhe apetecer aplicar “ciência pela ciência”, ele precisa sentir que equilibra ciência e afetividade e que evita desaguar num ato burocrático, tal como: O senhor aceita? Sim ou Não? Registrado. O próximo… Isto existe, é verdade, mas é importante causa de insatisfação profissional, leia-se desilusão.

O tempo de exercício profissional lapida o Bom Médico. Ser bom médico implica em preocupar-se com o paciente e ajudá-lo a tomar certas decisões difíceis. Uma dose de utilitarismo para o caso de uma negativa inicial que é evidentemente prejudicial à saúde do paciente na visão do médico, ou, que não facilita uma pesquisa, estimula que as relações de risco-benefício sejam repassadas com novas estratégias, foco em certos detalhes e muita paciência. Tal atitude eticofônica, porque soa comedida e não conflitante com fundamentos de escolha do paciente, não é violação do direito à autonomia. Ela representa exercer a responsabilidade do ser médico com o conhecimento científico atualizado e atualizável e validado e  a ser validado num limite de coerência com o pleno juízo do paciente sobre a tomada de decisão e num verdadeiro respeito à vulnerabilidade ditada pelo desnível de domínio da Medicina.

Conhecimento, afetividade, disposição e atitude são matérias-prima do apoio profissional para formatar a abertura do leque médico de tomada de decisão que melhor se ajusta àquele ser humano que padece de uma doença. Cada indivíduo em cada circunstância fará níveis de resistência que determinarão uma posição do leque num primeiro momento. Talvez ela não seja a definitiva, seja a máscara, que moldada por certos sentimentos de plantão, não representa “a real cara” do paciente. Quem nunca testemunhou movimentos e contramovimentos deste leque acontecerem e produzirem relevantes mudanças que, não somente foram éticas -prudentes e zelosas-,  como também  subsequentemente agradecidas?

Se é verdade que quem cala consente, também será válido na beira do leito pensar que quem sente não se cala.

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