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163- *PRÓTESE ÉTICA* Blog-novela Capítulo II

∇∇∇Capítulo II ∇∇∇

Apresentação2 Terceiro pedágio bioético- internação

Dr. PN -LS, você  aceita  participar  de uma pesquisa sobre uma nova bioprótese?

LS  – Se quem me pede é o  médico da minha confiança, presumo que devo aceitar.

Dr. PN – É um projeto  de grande  interesse, estamos animados com ele. O seu caso se encaixa muito bem nele.

LS   -­­ Sim, doutor, aceito.

Dr. PN  -Pensamos que esta nova bioprótese além de trazer mais vantagens para a circulação do sangue  dentro do coração, reduzirá a probabilidade de  reoperação.

LS – Doutor, esta parte me interessou. Vou poder colaborar com a sua pesquisa e com o meu coração.

Dr. JN – Mas não temos certeza…

LS- Doutor, eu sei que o senhor deseja o meu bem.

BBL -LS  foi vinculado à integração de interesses da Cardiologia, do pesquisador e do voluntário. Temeroso com cirurgias, ele se identificou particularmente com a hipótese da queda de perspectiva de reoperação. A confiança no médico transferiu-se para a pesquisa.

O Dr. PN era experiente em captar pacientes no ambulatório e  realocá-los na Pesquisa.  Aplicava e ensinava que os princípios morais exigiam que o espírito científico, o próximo Congresso e qualquer tipo de apelo ao altruísmo não poderiam,  sob nenhuma hipótese, falar mais alto do que a livre escolha pelo paciente.

A boa relação Dr.PN-LS  foi estímulo pela deferência. Ficam, contudo, as questões: Simples aquiescência  pela confiança no médico? Real consentimento pela beneficência presumida?  Ambas se conjugaram?

O certo é que LS assinou o  Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e foi passado para a categoria de voluntário de pesquisa, consequentemente para a tutela da  resolução 196/96 do Ministério da Saúde.

A perspectiva sobre a nova prótese funcionou como certa compensação ao desalento pela operação. LS até se viu com sorte pelo  seu coração poder desfrutar do  “ainda melhor”.  Quem sabe a operação não seria assim tão má…

Na pesquisa que  envolve  implante de bioprótese, nenhum botão rewind pode ser apertado. A válvula nativa excisada  após  uma escala na mesa da instrumentadora cirúrgica acabará fatiada, incluída em lâminas e colocada sob o microscópio de um membro da equipe que, por ofício, costuma ficar à margem das coisas da  Autonomia. O exame anatomopatológico de peça cirúrgica não suscita, habitualmente,  reflexões sobre preservação de abuso da  autoridade  médica. Por estrito rigor  deveria?…

Quarto pedágio bioético- trajeto para o Centro Cirúrgico

BBL  LS já estava na maca para transporte ao Centro Cirúrgico, sob efeito do pré-anestésico, quando recebeu a visita do Dr. PN. O que parecia para LS uma bem-vinda atitude de solidariedade, de repente transformou-se na  privação da fonte de otimismo que lhe servira de suporte emocional nos últimos dias.

Dr. PN  – LS,  você foi sorteado pelo computador para ser paciente-controle na pesquisa. Precisava lhe informar.

LS- O que quer dizer isso, doutor?

Dr. PN- É que você não irá receber a prótese nova.

LS  — Doutor, a “velha”?!…

BBL  LS não  conseguiu completar. O elevador chegara e ele estava  passageiro na maca, imediatamente  empurrada adentro. Como será que funciona a Autonomia para quem se encontra inferiorizado para dialogar, deitado vendo o mundo de baixo para cima e ademais já entorpecido pelo midazolan?

LS não estava capaz, mas não era momento para revogar o consentimento.  Curiosamente, se  LS  pudesse ter optado pela revogação da condição de voluntário da pesquisa,  nada mudaria, porque ele receberia a mesma prótese “velha”.

Dr. PN  (falando com seus botões … do avental) – Imagino quantas pessoas recusaram-se a ser vacinadas, até se revoltaram, para depois terem de dar consentimentos muito mais angustiantes atingidos pela doença.  Pensando no LS, ele não teve oportunidade de dizer não à  febre reumática, origem da sua valvopatia e,  agora, tinha o direito de se negar a consentir a um benefício  apresentado justamente por quem pretende minimizar as conseqüências da doença imposta. É difícil de entender.

BBL   LS  deve ter ficado triste com a notícia pelos segundos que pode. O otimismo sobre a nova bioprótese provocara uma contrapartida pessimista sobre a “velha”.  O cronograma da pesquisa provocou  um sim inicial para a nova bioprótese como senha  do respeito à Autonomia para a condição de voluntário e um não à mesma, pela heteronomia  de um programa de computador.  Ético para o pesquisador, desagradável para o paciente.

É interessante enfatizar como a mesma prótese pode ser apreciada sob dois modos opostos. Como bioprótese-assistencial ela estava corretamente apresentada e autorizada. Como bioprótese-controle, foi opção de certa maneira escamoteada pelo Dr. JN, embora estivesse escrita no Termo assinado. Tais atitudes “inconscientes” parecem  sugerir que  inexiste espaço para a  aposentadoria do Paternalismo por tempo de serviço.

 A palavra da Bioprótese

BP  – O meu dia-a-dia de pericárdio  era proteger o coração de uma vaca de raça. Carminha era o nome dela. Quando eu já me imaginava indo prum lixão, resgataram-me no frigorífico, deram-me um banho de  laboratório e prepararam-me para uma missão de bio-solidariedade. Senti-me um herói, um privilegiado.

É exultante saber que nasci bovina e agora vou salvar uma vida humana não como alimento. No Centro Cirúrgico vou “naturalizar-me” humano. Com a mão posta sobre o Livro de Medicina, jurarei trabalhar sem folga para o paciente que passará a depender de mim. Sou grato a esta oportunidade extra que tive.

No Laboratório onde ganhei nova identidade biológica, ensinaram-me como devo exercer o meu novo ofício: eu facilito a passagem do sangue num sentido e a impeço  no oposto. Uma espécie de guarda de trânsito, brinquei com as colegas da linha de produção. Máxima atenção ao que é sístole e ao que é diástole. Estou preparada para abrir e fechar umas 120 mil vezes por dia, sete dias todas as semanas. Explicaram-se que vou sofrer desgastes com o tempo. Incorporaram-se um prazo de validade, um dia deverei ser substituída.

Uns cientistas metidos a psicólogos vieram fazer a minha cabeça, que eu não devo me considerar uma válvula perfeita, não passo de uma prótese. Fingi que entendi. Vou cumprir o meu papel, é o paciente com o seu médico que devem vivenciar as angústias sobre os meus prós e contras e pelo que eu pude aprender minhas limitações em nada debilitam as estratégias terapêuticas que contam comigo. Se a Natureza criou doenças que destroem a boa valva cardíaca, como eu conseguiria ser ideal? O Dr. Harken que me perdoe.

Estou convicta que  sou  uma solução maravilhosa, orgulho-me, mesmo.  Estou ciente que represento um futuro de bem-estar para quem tem um passado de mal-estar. Alegro-me quando percebo que funciono como uma crença, que nada tem a ver de religiosa, mas tem o mesmo sentido da salvação. Sei que sou um santo remédio. E como tal me desempenharei eterno enquanto for possível.

Diálogo Bioprótese-paciente, 50 dias de pós-operatório

LS- Obrigado BP. Após 50 dias, eu sinto que posso confiar em você. Como você já deve ter percebido, eu retornei a minha rotina.

BP- Obrigado por me aceitar, aliás não sou de provocar rejeição.

LS- Quem tem de agradecer sou eu.

BP- Fiquei  numa prateleira um mes,  angustiante, me sentia um inútil.

LS- Posso imaginar.

BP- Até fiz amizade com o Chico que cuida do almoxarifado.

LS- Não diga!

BP- O dia mais frustrante da minha vida de prótese foi quando me levaram para o  Centro Cirúrgico e depois de medir o local do implante, escolheram uma prótese um número menor do que o meu.

LS- É que o destino a reservava para mim.

BP- O Chico me consolou, estive  a ponto de me atirar da prateleira.

LS- Prótese suicida?

BP- Só não fiz porque o Chico me disse que considerariam desleixo da parte dele.

LS- Agora você está com emprego fixo, com estabilidade e trabalhando com prontuário assinado. Só que férias…

BP – Não me canso e não sinto o tal do desgaste, pelo menos por enquanto.

LS- Abrindo e fechando numa boa.

BP- Abrir e fechar é uma ginástica revigorante.

LS- Ainda bem que você não tem medo de sangue.

BP- Não tenho. Por sinal, estou convivendo muito bem com o sangue que nunca tinha visto quando eu era apenas um pericárdio.

LS – O meu sangue é bom, nada de colesterol, de diabete, agora nem mais  tem álcool.

BP- Percebi já nas primeiras horas, acho que não aguentaria cheiro forte de álcool, espirraria, tossiria, me embriagaria talvez.

LS- Bendita úlcera que me fez  tomar só água com omeprazol.

BP- O bom dos males.

LS -O doutor me explicou que você era segurança do coração do boi, quer dizer da vaca, para defende-lo dos vizinhos,

BP- Era mesmo. O pulmão esquerdo era terrível. Adorava me provocar. Coitado, foi pro lixão do frigorífico.

LS- E agora você virou minha segurança circulatória.

BP- Com prazer. O ambiente é muito agradável.

LS- Nenhum chato?

BP- Nenhum, até as plaquetas não me incomodam, nunca  fizeram menção de se empilharem em mim.

LS- Boas condições de trabalho, então.

BP- Totais, temperatura agradável, mais para quente, boa umidade, boa vizinhança.

LS- E as outras válvulas, receberam bem a sua admissão?

BP- Estou me dando maravilhosamente bem com a minha vizinha válvula mitral.

LS- É bom saber.

BP- Desde o início, tivemos uma sincronização perfeita. Eu fecho, ela abre, ela fecha, eu abro.

LS – Os doutores trabalharam bem.

BP – Após o último ponto dado pelo cirurgião, já senti que era parte do seu corpo.

LS- Eu estava sabe lá onde com toda aquela anestesia.

BP- Foi emocionante quando chacoalhei com o choque no coração e ele começou a pulsar.

LS- Eu não senti nada.

BP- Aquela sensação que eu estava abrindo e fechando, como sonhara…

LS- Espero que este entusiasmo seja duradouro, confesso que acho seu trabalho monótono.

BP- Aqueles doutores metidos a psicólogos trabalharam este aspecto comigo, fique tranquilo.

LS- Engraçado, o doutor me disse que o meu coração parecia de boi  e que agora com uma válvula bovina, ele voltava a parecer humano.

BP- Solidariedade da Natureza, tecnologia do homem, domínio da ciência pelo médico.

LS- Medicina maravilhosa.

BP- Mas LS,  você sabe que eu não vim exatamente com um manual do proprietário.

LS- Não me deram nenhum mesmo.

BP- Ficaria muito grato se você fosse bem obediente ao médico.

LS- Eu sou. Daqui para frente tenho que assumir responsabilidades sobre você.

BP- Posso lhe fazer um pedido?

LS- Não me pedindo férias, pode.

BP- Não faça muito esforço por enquanto, você sabe, como  sou novata, posso me atrapalhar numa taquicardia, abrir quando tinha que fechar…

LS- O doutor já me orientou, nenhuma atividade física por uns meses ainda.

BP- Obrigado.

LS- O doutor disse que só vai me liberar depois de fazer um ecocardiograma.

BP- Ah! sim, aqueles médicos metidos a psicólogos também avaliaram se eu tinha algum traço paranoide.

LS- Por que?

BP- Disseram que algumas próteses surtaram.

LS  – Como assim?

BP-  Esbravejaram que estavam sendo perseguidas pelo transdutor da ecocardiografia.

LS  – Que loucura!

BP -Elas só aceitavam avaliação pelo estetoscópio.

LS- Sim, o aparelho que o doutor carrega no pescoço.

BP- Alegaram invasão de privacidade.

LS- E você, o que pensa?

BP- A experiência até agora foi pequena, vamos aguardar…

BBL  LS retornou ao trabalho, bem disposto, sem queixas e obedecendo às ordens médicas.

∇∇∇ Prossegue no capítulo III ∇∇∇

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