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158- Contos de fada e Residência médica. Construções de significados

CONTOS DE FADAS 001

Era uma vez um dos cenários mais simbólicos dos Contos de Fada. Três aves visitam repetidamente o ataúde de cristal transparente de Branca de Neve envenenada pela maçã.

O trio é composto pela coruja que representa a sabedoria, o corvo, a consciência madura e a pomba, o amor, como nos ensinou o criativo e controverso Bruno Bettelheim (1903-1990) em seu livro A Psicanálise dos Contos de Fada.Trio

A Bioética da Beira do leito vincula a “segurança emocional” da beira do leito à aplicação destes três atributos pelo médico. É fundamental para a atuação profissional em prol de “viver feliz por muito tempo” significando sobrevida e qualidade de vida, mas não vida eterna.

Contos de fada não são textos com a plausibilidade e a aproximação da realidade do Livro de Medicina. Mas, sua maneira de apresentar  fatos e personagens é matéria-prima proveitosa na formação do médico. É fácil perceber que os ideais de bem-estar de um personagem dos Contos maravilhosos que vive na adversidade e os de um recém-formado que convive com limitações profissionais comungam mentalizações de sucesso em “palácios” – como a beira do leito- do haver e do saber.

A Bioética da Beira do leito identifica-se com os Contos de Fada na medida em que ela se dispõe a apoiar o desejo do médico por uma consciência superior, por exemplo, sobre os fatores intervenientes numa situação de crise da beira do leito.

De fato, Contos de Fada provocam  um problema existencial e dispõem os personagens ao redor do bem e do mal, em busca de resoluções com evidente fundo moral.  A brevidade e a concisão facilitam o efeito pedagógico.

Assim, jovens do folclore direcionam-se a novos ambientes portando tão somente suas capacidades inatas; eles ajudam personagens diversificados, que lhes retribuem facilitando a obtenção de benfazejas recompensas; maldades da índole são neutralizadas pelo amor. O preço é fixo, entrar num ambiente hostil – floresta, domicílio de bruxa, sujeição à madrasta má-, passar por obstáculos sentindo fortes emoções e adquirir créditos de riqueza interior e exterior; a moeda senso de oportunidade é bem cotada e o bom caráter é fiador recorrente.

Em correspondência, jovens Residentes de Medicina direcionados para um ambiente com oportunidades complementares ganham satisfação profissional quando convertem o mal-estar provocado pela ansiedade das cenas  amedrontadoras da manifestação clínica no reconfortante prazer do domínio da situação e do sucesso final; quando pacientes variados assistidos dão em troca a aquisição de maravilhosas habilidades; quando males das doenças são combatidos pela devoção aos benefícios. O custo é fixo, frequentar um ambiente de desafios- tecnocientíficos e de atitudes-, enfrentar  dilemas, informado das probabilidades e consciente das incertezas e ganhar confiança no próprio patrimônio do saber; a moeda compaixão é bem cotada e a eticidade é fiador recorrente.

Ademais, nenhum personagem dos Contos de Fada é ambivalente, ou seja, ele ou é bom ou é mau, ou é feio ou é bonito, ou é pobre ou é rico. É frequente a formação de pares opostos, ajudando a criança a compreender as diferenças. Observa-se uma abertura à salvação de uma morte “consumada” (pelo caçador, chapeuzinho vermelho saltou para fora do corte na barriga do lobo dizendo como estava escuro lá dentro). Constituem instrumentos pedagógicos para crescimento interior da criança, contribuindo para sustentar uma visão de harmonia à existência adulta. Valores considerados e moral da história objetivada forjam elos educativos entre as gerações- conselhos nem sempre são oportunos, as aparências enganam, sofrimentos podem ser vencidos, gato e rato não podem ser amigos eternos.

Há muita analogia com a formação do médico. Primeiro aprende-se sobre o fígado normal, depois sobre  o fígado anormal. Fisiologia e Fisiopatologia representando fielmente o mundo real da beira do leito. A Ética aparece quando a sabedoria, a consciência madura e o amor captam que o corpo do paciente reúne combinações “destes personagens” e que, agora como lição avançada da Medicina, os métodos a serem aplicados funcionam diferente, pois admitem ambivalência.

Em correspondência, Residência médica, ao indicar as utilidades e as inutilidades, os contraditórios entre o desejo pela Medicina “sempre boa” e a realidade da quebra de segurança, energizando a  reversão da morbi-letalidade (pelo cirurgião, o apêndice inflamado saltou para fora), é ferramenta  pedagógica para dar a adequada convergência entre a heteronomia do tecnocientífico e a autonomia da natureza humana. O acervo universal da Medicina conecta gerações- sejam prudentes, sejam zelosos, sejam autênticos, curas e estados de equilíbrio existem.

Mais um ensinamento dos Contos de Fada segundo Bettelheim, com valor na Ética Médica, é que as eleições da criança perante um conto de fundo moral baseiam-se mais no efeito de simpatia/antipatia do personagem do que propriamente no contexto de ser bom ou ser mau. A questão não é Quero ser bom? É Com que herói desejo me parecer? E, desta forma, a criança projeta em si mesma um protagonista.

É de se imaginar que os poucos mas indesejados colegas “eticopatas” devem ter muito a revelar sobre identificações que provocam contumaz infração a artigos do Código de Ética Médica vigente. Já nos contos amorais, inexiste a polarização ou a justaposição do bem e do mal e o objetivo é estimular a confiança que o mais humilde pode triunfar na vida- O Gato de botas, por exemplo.

contribuem para que o mal-estar provocado pela ansiedade das cenas  amedrontadoras da manifestação clínica converta-se no reconfortante prazer do domínio da situação e do sucesso final.

Ademais, a interpretação de Bettelheim sobre a fantasia da madrasta cruel é útil para a compreensão de evoluções distintas na beira do leito.  Os Contos de fada usam a figura da madrasta como dublê a fim de preservar a mãe dos sentimentos a ela negativos da fase infantil.  Assim, facilita à criança preservar a boa imagem da mãe, direcionando seus sentimentos contraditórios para a madrasta.

Creio que cabe a analogia, tendo a Evidência científica como a mãe do médico. Vamos supor um jovem com sentimentos contraditórios sobre a Evidência científica em função das muitas alternâncias de sucessos e de insucessos na aplicação. Evidentemente, ele não se sentirá bem em detratá-la, sabe que ela representa o acolhimento ao estado da arte. Mas quando o útil e o eficaz materializam-se como tendo sido uma inutilidade, o jovem Residente desloca seu sentimento de frustração para a providencial madrasta que existe em toda Evidência científica. Os médicos com CRM baixo já perceberam como o aperfeiçoamento das condutas da Medicina significa eliminação de madrastas.

Utilizando a linguagem da interpretação dos Contos de Fada, o Residente de Medicina percorre a beira do leito para conhecer a aflição, a provação, a injustiça, ser acolhido por fadas com o condão da construção ética, expulsar bruxas com poderes malignos de prognóstico, tornar-se o caçador resolutivo e aprender a conciliar seus idealismos com as diferenças representadas pelos 7 anõezinhos. E, essencial, ordenar seu pensamento sobre o desejo de ter a beira do leito como o paraíso das diretrizes clínicas e as realidades da “madrasta cruel”.

A analogia do desafio a adversidades em meio a aflições, a metáfora do sono como evitação da morte, o incompreensível não obrigatoriamente insolúvel, a semelhança entre encaminhar-se a um reino longínquo vantajoso e ampliar as fronteiras do conhecimento, a conquista de uma identidade profissional e auto-realização num nível superior, tornam aplicáveis à Residência Médica os quatro estágios da pedagogia dos contos de fadas – travessia, encontro, conquista e celebração.A1 A2 A3 A4

 

 

 

 

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