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136-Tsunami de prata e o idoso

Um  interesse emergente da Bioética no Brasil é o envelhecimento da população. Daqui para a frente, o universo de pessoas acima dos 60 anos crescerá a ponto de representar percentual acima de 22% em 2050. É muito, até porque associa-se à redução da juventude. A fila de prioridade de idosos vai perdendo a sua vantagem.

Alguns mais afoitos e inábeis com as palavras falam em Asilo Brasil. Como se sabe, grande parte dos idosos vive da aposentadoria ou da pensão e com baixa oportunidade de inserção no mercado de trabalho. Ou seja, não manipula “dinheiro novo”.

Um efeito binóculo provocou a criação de um termo terrível: tsunami de prata. Trata-se de uma metáfora que significa que a deterioração biológica que acompanha o envelhecimento, distancia o idoso das vantagens da cidadania e torna-o ameaça à sociedade. Enfim, um desastre da Natureza. Até que ponto chegamos! O “velhinho” que construiu a casa agora é um inquilino incômodo.

Uma visão de choque de gerações acontece a partir da queda da autonomia do idoso e da elevação dos conflitos sociais e morais relacionados com a terminalidade da vida e com a alocação de recursos, repetidamente ditos finitos. A senescência forma barreiras biológicas à convivência e ao usufruto das facilidades de atenção ao cidadão.

Por isso, o valor da Bioética como um operário na construção de pontes que aproximem bisneto do bisavô, neto do avô, filho do pai e contribuam para prover harmonia intergeração de modo geral.

É tarefa hercúlea, sem dúvida, mas os primeiros tijolos não podem demorar para  serem assentados, pois a obra é longa com perspectivas de construções, desconstruções e reconstruções de acordo com  o desenvolvimento das demandas individuais, mudanças sócio-econômicas e movimentos da dualidade influência do idoso na sociedade-influência da sociedade sobre o idoso, a chamada socialização.

Já ficou bem claro, na transição do século, que envelhecimento e sociabilidade é tema-produto da Medicina sobre a longevidade. A maior sobrevida às doenças provoca um “natural” futuro de redução ou de perda progressiva de funções biológicas, que restringe o bem-estar e a independência do “velhinho”. Mas, também um estímulo permanente a pesquisas em Medicina visando substituir contra-indicações de clássicos terapêuticos em indicação de inovações terapêuticas e, em decorrência, cresce o número de octogenários, nonagenários e centenários.

Quando Alois Alzheimer (1864-1915) descreveu a doença neurovegetativa na primeira década do século XX, a expectativa de vida no mundo era baixa, com alto impacto letal das doenças infecciosas. Um século depois, o progresso do diagnóstico e da terapêutica controlou a letalidade ligada a bactérias e proporcionou o desenvolvimento da “epidemia” de doença de Alzheimer.

Em outras palavras, as limitações e os limites do “projeto humano” destituído de certas  nocividades ambientais passaram a ser mais conhecidos e vivenciados. Por exemplo, aprofundaram-se os saberes sobre senescência como processo metabólico ativo que bloqueia a capacidade proliferativa segundo programação genética. A convivência com a terceira idade tornou-se assunto de maior número de famílias e de objetivos de projetos sociais, ao mesmo tempo em que a Geriatria adquiriu mais responsabilidades de clínico geral e de especialista.

A Bioética tem a perspectiva de cooperar para a expansão de uma plataforma para a convivência em várias frentes do já idoso com o ainda não idoso. Ponto essencial é o auxílio à integração entre valores e ética. Recorde-se que na Grécia antiga, um tonel de cicuta ficava à disposição de idosos. A consciência pelo idoso que não lhe cumpria mais viver era, assim, valorizado. A Bioética pode, de certa forma, contribuir como antídoto para “cicutas morais” que possam afetar a dignidade do idoso. Engrandecer o sonho de viver bastante sendo respeitado e considerado em qualquer faixa etária.

Pelo princípio da Beneficência, a Bioética é ferramenta para seleção de métodos úteis e eficazes na população senil, assim reduzindo o desperdício com inutilidades, quer por ocasião do controle de doenças agudas e do agravamento das crônicas, quer para evitação da Distanásia. Aliada à Ortotanásia, a Beneficência ilumina o valor dos Cuidados Paliativos, conferindo a dignidade da prudência e do zelo da atenção às necesidades, ante as realidades da futilidade circunstancial da Terapêutica.

A Não Maleficência, na moderna renomeação para Segurança, colabora para evitar que métodos validados exerçam efeitos deletérios em função de fragilidades e de associação de comorbidades presentes no idoso. Assim como o ser senil não deve ser privado do benefício tão-somente pela idade cronológica, é fato que a apreciação da idade biológica deve compor o raciocínio clínico que leva a tomadas de decisão num cenário de relação risco-benefício desfavorável.

É dilema do cotidiano a dualidade intervir sob alto risco- deixar evoluir a história natural da doença. Neste contexto, quaisquer análises de custos om vies restritivo e de interferências de familiares com teses de malefício na consecução de procedimentos, devem ser motivo de apreciação judiciosa por quem detém a condução clínica do caso. Vale lembrar que bens é plural de bem, mas muito desejar o bem do paciente-pessoa querida pode estar longe, antagonizar-se mesmo, de preocupações e de desejos com bens patrimoniais, quer no âmbito familiar, quer no do sistema de saúde.

Já a Autonomia é Princípio que tem uma ligação direta com a senescência. Perdas cognitivas determinam quedas da capacidade legal para decisões, o que nem sempre é fácil de se definir. Em nome da compaixão, filhos “tornam-se pais” do pai ou da mãe, suscitando a prática do paternalismo que insiste em decidir sobre o melhor para o “filho-pai/mãe”. Conflitos ocorrem com frequência neste ambiente, quer entre os familiares em si e entre estes e a equipe de Saúde. A terminalidade da vida é caldo de cultura para o desencadeamento de crises da beira do leito, por exemplo, quando o médico entende que o paciente está capaz de participar ativamente da tomada de decisão e familiares utilizam-se do conceito leigo de “velhinho”, que subentende dano por más-notícias.

Por fim, a Equidade como Princípio da Bioética nos faz lembrar que o Brasil comunga com a universalidade no acesso aos serviços, com a igualdade na atenção às necessidades clínicas e a com a equidade na distribuição dos recursos,  como pilares do Sistema Único de Saúde (SUS). Acontece que a senescência coloca o idoso num topo de vulnerabilidade no consumo dos serviços de saúde. É preciso atentar para apreciações de “inconveniência” de atendimento, à margem de Princípios Fundamentais do Código de Ética vigente e contê-las na medida da conveniência social.

Refiro-me a ideias de redução da pertinência de alocar recursos de várias naturezas para o idoso, como leitos hospitalares e suas amplas implicações, privilegiando atendimentos não tão longos de faixas etárias menores, o que, de certa forma, contém vieses de um “pensamento SUS”. Por outro lado, cabe à Bioética participar de uma atitude de vigilância sobre eventuais vantagens do atendimento geriátrico quando num ambiente que estimula olhares de lucros de alta intensidade, em função da demanda por procedimentos diagnósticos e terapêuticos e, deveras inquietante, sobre constituir motivação para redução de leitos de outras especialidades com menos retorno financeiro.

Em suma, a Bioética não pode ficar de fora de qualquer política de saúde que visa a evitar que a dignidade do idoso seja comprometida por uma metáfora de tsunami de prata como expressão de desatre para a socidade como um todo.  Como reforço, Van Rensselaer Potter (1911-2001)  assinou a certidão de nascimento da Bioética aos 60 anos de idade, quando lançou o seu livro Uma Ponte para o Futuro.  

 

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