PUBLICAÇÕES DESDE 2014

27-Teclo, logo me consulto

Dr._Google

Dr. Google é uma denominação bem humorada  sobre a capacidade da internet  de dispor do acervo da Medicina para consulta imediata, não importa o quão complexa ela  fique dia após dia.

Eu acho o Dr. Google um fenômeno, um indicador de sucesso de um site de busca que virou uma metonímia. Aliás, de modo inverso a sanduíche, gilete e pinel na precedência da pessoa motivadora (Conde de Sandwich-1718-1792, King Camp Gillete-1855-1932 e Philippe Pinel-1745-1826).

Escada de Bloom
http://www.scielo.br/pdf/gp/v17n2/a15v17n2.pdf

Não imaginado por Hipócrates, o Dr. Google coloca a Medicina aos olhos e à mão. Um médico de bolso no smartphone, um médico sempre disponível em casa, no escritório, no lazer, bastam poucos cliques. Dizem que o seu consultório fica numa nuvem, que ele passa visita em fibras ópticas nos fundos de oceano em fibras ópticas e  que ele é professor do ensino à distância.  

O Dr. Google não é de carne e osso, mas se interpõe entre emissores e receptores humanos. Os mais velhos têm certas dificuldades de compreensão. Já os jovens lhe dão feição amigável. Há um senso de credibilidade, quem sabe transferida da (não mais) freqüencia a bibliotecas, como se fazia antigamente. Acessamos qualquer prateleira, pegamos qualquer “livro”, muito embora sem nenhum filtro de qualidade. É tudo muito difuso. Se a página não abre, que se passe para a seguinte, o Dr. Google estará lá também.

Presumo que todos conheçam o Dr. Google de que estou falando. Mas também presumo que ninguém conhece o número do CRM dele, nem se carimbo ele tem ou se anda com o estetoscópio pendurado nos ombros. Não se sabe se ele fez Residência Médica, se defendeu tese, onde mesmo se formou. Mas aí está ele “clinicando” para quem se interessa. Ele é um poli especialista, muito embora cada médico não possa ter mais do que duas registradas.

O Dr. Google virou uma entidade de muitas caras e único corpo. A  sua palavra pode ser vantajosa, indiferente ou prejudicial.  Assim o vejo. É a visão do médico que conhece a multiplicidade de cenários da beira do leito, mas não é necessariamente a visão do leigo, que é restrita pela não familiaridade com a Medicina.

É importante, pois, dar ao Dr. Google a sua real dimensão de utilidade. Ele é muitas vezes ambíguo como o Oráculo de Delfos, mas se este assim pretendia que a pessoa assumisse decisões próprias, o objetivo do Dr. Google que se pode  aceitar é, na verdade, de ser uma superposição de porta-vozes com distintos graus de representatividade e de legitimidade na área da Saúde.  A real utilidade pública está incluída. Cabe, contudo, conteúdos de futilidade clínica.

O Dr. Google informa sobre tudo na área da Medicina. Esclarece nem tudo. Nada assume no concreto de um caso.  Do caso que alguém aflito ou só curioso “consulta”. Ele faz anamnese e exame físico ao seu modo. A anamnese é composta das palavras-chave e o  exame físico é feito em espelho com a mentalização do consulente. Coceira por todo o corpo, manchas vermelhas gigantes, assim é que o “aconselhamento” sobre o diagnóstico será estruturado.

O Dr. Google nunca será chamado ao CRM, médicos podem ser indiretamente. Se ele for,  não poderá apresentar o prontuário do paciente, mas tais colegas precisam para  responder à reclamação do paciente/ familiar de que teriam sido negligentes ou imprudentes em relação ao que o reclamante leu e interpretou da “consulta” ao Dr. Google. Não há dúvida, o Dr. Google gera expectativas e, portanto, frustrações são possíveis.

Assim, é cada vez mais frequente que a nossa consulta seja desde o início uma segunda opinião. O paciente fica vigilante ao nosso empenho, mas também ao modelo idealizado no acesso eletrônico. Os otimistas dirão que é bom porque motiva a demanda. Concordo. Os pessimistas dirão que traz a perda de tempo da desconstrução  da “recomendação” do Dr.Google. Concordo também.

Então o Dr. Google é unanimidade? É que ele suscita vertentes antagônicas de opinião, cada qual com o potencial de compartilhar mesmos adeptos. Por isso é que ele é um fenômeno. Ir ao Dr. Google é um processo fora do ambiente médico com etapas em consonância com ambientes de fato médicos, antes, durante ou depois do atendimento.

O fato é que ser um revisor “ao vivo” do Dr. Google soa como inevitável. Não adianta ficar bravo, é mais produtivo aprender como lidar. A sociedade ama a internet, fixa o olhar na tela do computador por horas, confia nela a ponto de inserir intimidades e privacidades. Narcisismo à parte, porque não se valer do www para conhecer o desconhecido que parece estar prejudicando a própria saúde?

Auto-medicação? Pode até direcionar melhor para medicamentos que são permitidos adquirir sem prescrição médica.  Mas auto-avaliação com o passo-a-passo  pelo Dr. Google é perigoso para o paciente.

Fundamentações sobre a temeridade do Dr. Google desembocam na figura do binóculo: ele tanto amplia quanto minimiza-quando se segura invertido.  Elas incluem a ausência da sabedoria prática que faz comprometer ajustes necessários, que o médico rala muito para aprender a fazer.  Elas indicam que uma “consulta” ao Dr. Google  carece do valor  clínico inestimável  que está presente no conhecimento vivenciado caso-a -caso análogo, não somente para o bom uso do que é habitual, como também para a inserção de inovação. Esta é capital, pois costuma seduzir pelo glamour da novidade “agora disponível e mais pujante” e que coloca o seu consumo num patamar de prioridade. Muitas vezes a curva de aprendizado dela é inicial e a disponibilidade escassa, mas fica oculto no texto.

O paciente-consulente está na rede, mas não em rede, pois não pode usufruir do diálogo. E é ele que dá a imersão na realidade individual.  A superficialidade domina. Muitas lacunas resultam preenchidas por analogias ou por imaginação. Um risco de intercorrência de 3% pode ser alto para o método em comparação com outro, mas é interpretado de forma isolada como garantia de 97% de sucesso.

Os sintomas inespecíficos são cantos de sereia que atraem para diversos conteúdos de doenças diferentes. O hipocondríaco que o diga. Ele assimila como deseja. O Dr. Google como ponto de referência traz a contradição de deixar o paciente livre para pensamentos sobre aplicações, mas, ao mesmo tempo, prisioneiro de informações não aplicáveis.

A Bioética alerta: É preciso esclarecer o paciente que chega com pré-diagnósticos e pré-tratamentos garimpados na internet que tenha cuidado para não fazer de palavras lidas uma realidade da sua individualidade. Especialmente porque será acrítica em altíssimo grau. Que o Dr. Google funcione como a cartinha de encaminhamento já está de bom tamanho, pior se der o entendimento de ausência de razão para ir a um médico (outro).

Ademais, cabe a grupos organizados como as Sociedades de especialidade injetar na internet informações com a credibilidade para o consulente do Dr. Google. Seria um Dr. Google figurado como um boneco competente de ventríloquos confiáveis na emissão das informações.

Nesta tarefa beneficente da “consulta” ao Dr. Google é essencial que seja respeitado em primeiro lugar o método socrático de educação a fim de proporcionar segurança  sobre clareza, redução de dúvidas quanto à  acurácia, destaque à relevância e  algum grau de  profundidade. E, em segundo lugar, a estruturação da Taxonomia de Bloom no domínio cognitivo que associa seis níveis progressivos de complexidade em dois grupos: o mais baixo inclui conhecimento, compreensão e aplicação e o mais alto junta análise, síntese e avaliação. No caso da divulgação na internet, apenas o primeiro nível deve ser considerado.

Assim, pensando nos objetivos, a forma de comunicação deve  ter a criatividade necessária para  prover o ganho de habilidades de conhecimento para se lembrar das informações  úteis para o convívio com a doença, por exemplo, de compreensão para dar significado a mudanças de hábitos, por exemplo e de aplicação para o uso em precauções terapêuticas, por exemplo.

Por último, não há como negar que o Dr. Google é fator de equidade. Ele “atende” usuários do SUS, da saúde complementar e particulares.   E não precisa de hora marcada!

 

 

COMPARTILHE JÁ

Compartilhar no Facebook
Compartilhar no Twitter
Compartilhar no LinkedIn
Compartilhar no Telegram
Compartilhar no WhatsApp
Compartilhar no E-mail

COMENTÁRIOS

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

POSTS SIMILARES