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95-O risco de um procedimento como futura má notícia em potencial e o consentimento do paciente

O termo ser humano é  usado no Código de Ética Médica em Princípios fundamentais. Todos os demais capítulos utilizam a palavra paciente. O que é vedado ao médico é referido à relação médico-paciente.

Desta forma, a Deontologia privilegia uma cultura individualista. Nela, associam-se o tecnicismo do cientificamente reconhecido, as relações hierárquicas -ressaltadas na  emergência e o foco na pessoa necessitada dos cuidados com a saúde.

A Bioética traz para a beira do leito o termo diálogo, inexistente no Código de Ética Médica vigente.  Constitui-se, assim, uma tríade  imprescindível  nos cuidados com a saúde: ser humano-paciente-diálogo com o médico.

O diálogo esperado é aquele acolhedor, com efetiva reciprocidade, livre, esclarecedor e tolerante. Nunca deverá ser um diálogo pró-forma “de surdos”. E, via oral presencial,  para a sustentabilidade da relação médico-paciente e o fortalecimento da beira do leito! Diálogo por papel é indesejável!

O diálogo médico-paciente tem sofrido transformações quantitativas e qualitativas no Brasil. Isto porque há mais conhecimento, há mais achados, há mais benefícios… e  há mais malefícios induzidos que motivam interesses de compreensão. Além do mais, há mais entendimento sobre direito do cidadão e sobre responsabilidade profissional sobre dano.

Doenças- em sua maioria- “acontecem”. Etiopatogenias e fisiopatologias são da natureza das mesmas, a quem responsabilizar? Gene ou ambiente? Um hábito de vida- que ao paciente pertence- ou um dano para a vida, coletivo, como a poluição atmosférica? A  excelência da dialética  sobre doenças pautada  numa multiplicidade de apreciações  exige  sólida plataforma Medicina/médico.

Pelo encontro com a Medicina/médico, a doença presente num paciente determina responsabilidades profissionais. Forma-se uma realidade de diagnóstico, de tratamento e de prognóstico. Ativa-se o profissionalismo.

O exercício do conhecimento e das habilidades deve estar combinado com atitudes  isentas de julgamento moralizador sobre faltas de consonância com os valores da Saúde reconhecidos pela Medicina/médico. O paciente pode ter  fumado  3 maços de cigarro por 40 anos, mas cabe ao médico usar a informação como fio condutor para o esclarecimento de uma imagem radiográfica suspeita, ou então, parabenizá-lo  por uma radiografia do tórax normal e usar o momento para dialogar sobre a grande oportunidade de eliminar o potencial etiopatogênico.

O profissionalismo na Medicina está sendo  praticado cada vez mais  numa atmosfera de comunicação oxigenada pela qualidade ética e legal. Inspiração para a ativação do processo de consentimento pelo paciente para a atenção a suas necessidades de saúde. Notícias em sucessão abrem janelas de linguagem de interlocução e que têm reconhecido  potencial de significados distintos para médico e para paciente. Especialmente no juízo sobre adversidades.

É fato o quanto o chamado descargo de consciência do médico, o para não dizer que não falei e o vai que, agregados ao receio de um processo motivado por se o doutor tivesse me dito, não teria feito, têm início sabido, mas provoca multiplicidade de enredos, alguns petrificantes para certos pacientes. Algo parecido com o que se possa sentir no momento da aquisição de um bilhete aéreo, se antes do consentimento para ser transportado embutido na efetivação da compra, recebêssemos a informação de que o voo é seguro, porém, não se pode dar total garantia de que ele chegue ao destino. Para o funcionário, uma rotina, para o viajante, uma sensação de insegurança. Sentimentos ao sabor de estatísticas!  Há as de domínio comum e há as de domínio específico. A distinção faz pensar no que deve ser joio e o que deve ser trigo no processo de diálogo médico-paciente apoiador para o consentimento do paciente. Não se pretende unanimidade de opinião.

E se  houvesse uma Medicina 100% segura, sem nenhum potencial de adversidades,  com benefício precisamente previsto? Haveria necessidade do consentimento pelo paciente?

Entendo que sim. Permaneceria indispensável para a interface com o esclarecimento do benefício. Ênfase  na justificativa para o procedimento, então, garantido ao sucesso. Mas, desnecessidade de incluir alertas sobre danos.

A imaginação perfeccionista acima, pela absoluta falta de realismo atual, reforça o poder da comunicação médico-paciente integrada ao princípio da autonomia.  Uma via  de duas mãos, emissão e recepção da informação admitindo heterogeneidades de foco. Longe de ser o mesmo bumerangue em respeitável percentual de situações. Tanto acerca de justificativas sobre o benefício quanto para prevenir acerca de danos.

Como  domina o desejo mútuo pelo sucesso, este deve, idealmente, ser o ponto central do processo dialogado de compreensão. Todavia, insucessos existem, iatrogenia zero é utopia já acima desconsiderada. A impossibilidade de o médico assegurar precisão a resultados, porque a Medicina o impede, e até porque cada paciente tem sua própria biologia humana reacional a procedimentos padronizados, faz convergir para o diálogo médico-paciente graus de amor-próprio, orgulho e narcisismo por parte do profissional. O médico é um ser humano. Polarizado para o bem do paciente, ele testemunha adversidades ao longo de sua carreira que seguidamente moldam o idealismo dos tempos do vestibular sem, contudo, extingui-lo.

E, desta maneira, médicos podem se sentir ansiosos para informar sobre o que pode não dar certo. Assim fazendo, eles contribuem para que determinados pacientes captem pelo lado do pessimismo, obscurecendo que o insucesso é minoria e, inclusive, pode ser raridade nunca vista no Serviço, embora descrito em bissextos relatos de caso. O diálogo médico-paciente pré -consentimento não se trata de uma prova para mostrar a amplitude de conhecimento, versa-se numa alimentação quantum satis de informação esclarecedora para que o paciente tenha a possibilidade de enxergar a situação com lentes próprias de valores e de preferências.

Dialogar  com franqueza sobre o potencial de vir a acontecer má notícia pós-procedimento mal sucedido em algum aspecto, é prática mais recente na relação médico-paciente. A pluralidade diversificada das circunstâncias  provoca uma permanente curva de aprendizado. Relacionar um rosário de danos já foi vista como imprudência, como fornecer “munição” para processos judiciais e éticos, frente a uma dominância da postura de se acontecer, aí explica-se

Atualmente, contudo, o diálogo pré-procedimento é observado como atitude de prudência, até porque conhecer possibilidades de futuro já independe do médico-assistente às custas do ciberespaço. Cresceu a consciência de dever moral considerar que a condição de paciente acumula a de  pessoa sob risco de danos em intervenções, apesar da boas práticas. Explicáveis ou inexplicáveis, há sempre a chance de uma intercorrência inédita para o procedimento. Não que o paciente em pleno século XXI desconheça que o sucesso não pode ser assegurado, mas detalhar é preciso para sustentar uma análise mais específica no processo de consentimento pelo paciente para uma intervenção que não faz parte do seu cotidiano.

Esta prática antecipatória sobre futuras más notícias em potencial de certa forma ocorre em reciprocidade com a máxima atenção sobre a Segurança do paciente, cada vez mais eticamente exigente. A relação das mesmas reverte como um roteiro para eventuais seleções de métodos  baseadas  na relação risco-benefício da  individualidade daquele paciente.

Por isso, a Bioética interessa-se pelo acompanhamento da “depuração” de possibilidades de benefício determinada pelos filtros da Segurança. Neste contexto, há médicos que raciocinam alto junto com o paciente na apuração, comentando prós e contras de um menu de métodos conceitualmente cogitáveis, e há médicos que se restringem a apresentar ao paciente o método “prato feito” que, na sua visão profissional considerou o eleito para o caso. Não deve ser desprezado, todavia, que eliminações de opções podem se constituir numa redução da eticidade do processo de consentimento. Mesmo médico pode se comportar das duas maneiras levado por circunstâncias culturais e sociais.

A sociedade vai assim “aprendendo” sobre a prática da Medicina, absorvendo e contribuindo em feedback com normatizações pela Ética e pelo Direito. Aspecto interessante, sempre uma chance em aberto, é o quanto a informação sobre futura má notícia em potencial é indutora de um sentimento de apreensão pelo paciente, a ponto, inclusive, de provocar um efeito nocebo.

É sabido que pesquisas clínicas convivem com mais ocorrência de sintomas atribuíveis ao método em função da necessidade ética do conhecimento antecipado pelo voluntário. A assimilação pelo lado negativo provoca uma autossugestionamento não consciente numa percentagem de pacientes. Esta possibilidade de o comunicado como risco torne-se efeito não deve ser motivo para a desinformação. Pelo contrário, ela deve estimular a competência na comunicação do que se entende responsabilidade do médico. Como acima comentado, há uma curva de aprendizado e os mais experientes sugerem reduzir o foco sobre efeitos difusos, comuns a muitos métodos, como gastrite pro fármaco, e concentrá-lo em peculiaridades intrínsecas da intervenção, como observado na oncologia, e na integração do método com particularidades do paciente, como agravamento de doença pré-existente.

Já comentamos em outros posts sobre o valor da Bioética para a interpretação de eventuais  infrações ao Código de Ética Médica. No contexto que estamos apresentando, o artigo 34 é exemplo: É vedado ao médico deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar dano, devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu representante legal.

A visão do médico está plena de vieses e, por isso, a conveniência de vedar o paternalismo forte. O enunciado coloca a prioridade sobre o paciente, o que  traz uma orientação a respeito do potencial de embates, por exemplo, com filhos zelosos que se comportam como protetores dos pais.  É o salvo que traz dúvidas. Haverá diferença no conceito de dano emocional pela informação de um diagnóstico de um câncer, de um risco de AVC hemorrágico no uso de anticoagulação e de possibilidades de intercorrência cirúrgica? 

Como interpretar o salvo, se cada paciente terá a sua reação emocional de ser humano que, nem sempre, é antecipável, por mais que um familiar possa supor previsível. Saber que tem um câncer é ponto inicial para a adesão a um tratamento ou para, ao contrário, recusar tratamentos, para tomar providências pessoais e familiares e para repensar a vida. Torna-se, assim, desejável transformar clássicas visões negativas de “dano” em positivas pela consideração de vantagens.  No exemplo da anticoagulação, haverá  o estímulo a uma adesão conforme recomendado. Na questão da intercorrência cirúrgica, uma hierarquia é bem conhecida.

A Bioética da Beira do leito incentiva o médico a desenvolver seus próprios instrumentos de avaliação do significado do impacto de má notícia em potencial no futuro do procedimento como dano para o paciente. No ajuste entre tecnicismo e empatia fica a arte do ser humano em aplicar a ciência ao paciente!

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