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35-O Doente Imaginado para Interesses não Éticos

bobbio
Marco Bobbiocabo de guerraAssisti neste 3 de dezembro à palestra do cardiologista italiano Marco Bobbio no InCor.  O tema foi o Doente Imaginado que é o título do seu livro Il Malato Imaginato, lançado em 2010. Mais do que 300 anos depois  de Molière  (Jean-Baptiste Poquelin, 1622-1673) ter escrito  o Doente Imaginário, a sua última peça de teatro.

O palestrante carrega um sobrenome famoso. Ele é filho de Norberto Bobbio (1909-2004), o filósofo de Turim que defendeu a liberdade individual, a tolerância e a eliminação do preconceito. Desde o início do meu interesse por Bioética, eu percebi o valor do pensamento de Norberto para aplicação na beira do leito.

De um modo bem didático, o Dr. Marco  transmitiu  sua  linha de pensamento sobre a atualidade da Medicina que põe ênfase na Segurança da pessoa. Pessoa que está doente? Talvez sim, talvez não, eis a questão.

Para o cotidiano do médico com a responsabilidade de atender a necessidades dos pacientes utilizando o melhor dos recursos disponíveis, as palavras do Dr. Marco foram  provocativas.

Sou um vagão atrelado a uma locomotiva equivocada? Muitos da platéia certamente se perguntaram. Urge uma mudança de paradigma em vários aspectos da Medicina, inclusive em  total contraposição? Será que estão me ensinando certo? Algum jovem médico pode ter se assustado.

O Doente Imaginado foi assim definido: Uma pessoa que médico e indústria  almejam  estar mais preocupada com o futuro do que seria  de se esperar pela situação atual de bem-estar  e que se manifesta pelo  tratamento de uma doença que provavelmente não existe, dizendo-se “bem preocupada”, e que aspira prolongar a sua vida, embora não seja capaz de decidir como fazer.

Conheci muitos. Vários saíram frustrados do Consultório porque me declarei súdito da Clínica Soberana.  É uma  categoria próxima do hipocondríaco, aquele que, na modernidade, tem sempre atualizado o celular do farmacêutico, para ser, qual o antigo Repórter Esso, o primeiro a  lhe dar as últimas notícias.

O Dr. Marco, dentro do que denomina de Medicina Intrusa, apontou para situações clínicas onde haveria indução da necessidade, como a realização de procedimento invasivo  com indicação não comprovada de superioridade  em relação a não invasivo, farmacológico, por exemplo. Talvez não haja obrigatoriedade ética para o benefício presumido e há riscos pessoais, que assim tornam-se desnecessários.

Outro aspecto abordado foi o conceito que ocorre invenção de novas doenças. Percebi que é ideia que se encaixa no conceito de medicalização da vida, que inclui laxantes, anorexígenos e hipnóticos quando há boa chance de resolução do problema com mudança de hábitos, por exemplo. Na concepção do Dr. Marco, quando sintomas são transformados em doenças, fármacos são colocados à disposição da “exigência de tratamento” pelo interesse em  vendas, a indústria vai à procura de pacientes-consumidores e de médicos-prescritores.

Mais um ponto do conjunto de ideias do Dr. Marco é o compartilhamento com uma lista publicada há cerca de 12 anos http://www.bmj.com/content/324/7342/883.1.full.pdf+html contendo “Não doenças” e que foram votadas pelos leitores do British Medical  Journal, a mesma revista que no ano seguinte publicaria o irônico artigo em que convidava os adeptos da Medicina Baseada em Evidências, refratários a dados apenas observacionais,  a participar de um estudo duplo cego randomizado objetivando conhecer o valor do uso do paraquedas na prevenção de traumatismo, pesquisa inexistente nos bancos de dados científicos. http://www.bmj.com/content/327/7429/1459.full.pdf+html.

O rol das Não doenças Inclui envelhecimento, calvície, bolsa sob os olhos, “jet lag” e tédio. Assim, aspectos normais da vida que são entendidos como problemas clínicos  estimulam o uso da Medicina Intrusa. Em tempos em que passamos a  ver muitas tristezas virarem  depressão e o envelhecimento suscitar a reprodução fisiológica da juventude por meio de hormônios, por exemplo, ignorando  a Natureza, admirei a maneira de sentir e de pensar do Dr. Marco.

Por fim, o Dr. Marco resumiu com a observação: “… Fazer mais não significa fazer melhor…”.

Ao término da palestra, ficou reforçado para mim como há diversos  ângulos a partir dos quais a Medicina pode ser apreciada. É notório como combinações variadas de uso das horas diárias comprometidas com ser médico “de campo”,  médico “da academia”, médico “pensador sobre ética”, médico “da gestão”, médico “com conflitos de interesse” refletem fácies distintas  na beira do leito.  O mais preocupante é a perda da neutralidade de juízo do médico no processo da tomada de decisão quando há o conflito de seus eventuais interesses com o Princípio fundamental II do Código de Ética Médica: “…  O alvo de toda a atenção do médico  é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional…”. http://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=category&id=9&Itemid=122

Há um Narciso de plantão em todos nós. De avental, estetoscópio pendurado no pescoço  e carimbo sempre à mão,  repetindo com freqüência:  “…Espelho meu, espelho meu, haverá algum médico mais  comprometido com o bem-estar do paciente do que eu?…”. Bom quando é uma admiração pelo olhar da Ética, ruim quando transgressão  ao Juramento de cerca de 10 séculos de Maimonides (Moshe ben Maimon, 1135-1204): “ …Que nem a cobiça, nem avareza, nem a sede de glória ou de uma grande reputação possam envolver minha mente no cuidado com o semelhante que sofre…”. E, considerando que Narciso amava era a sua imagem,  pode-se  complementar com Berthold Brecht (1898-1956): “… Porque ser um homem se podemos ser um sucesso?…”.

A visão apresentada pelo Dr. Marco não gera unanimidade, nem a favor, nem contra. Fatos do mesmo tema podem, inclusive, ser apreciados em campos opostos por mesma pessoa, em momentos diferentes.

As distorções ventiladas  não acontecem sempre que há conflitos de interesse, por exemplo, ocorrências de fraudes são exceções, muito embora um caso já seja  elevado em função do potencial de maus efeitos.

A semântica faz diferença. Eliminando-se, por exemplo, os rótulos nova doença e não doença, e nomeando como “coisas”  da vida, o mesmo médico pode enxergar justificativa de tratamento ou de não tratamento, em função de circunstâncias da individualidade da pessoa. Nem todo careca quer fazer implante de cabelo, nem todo obeso deseja um comprimido emagrecedor e nem todo constipado intestinal preocupa-se em saber se há  orientação médica.

A questão da medicalização da vida e da não doença não é nova e já foi objeto da apreciação bem-humorada por Miguel de Oliveira Couto (1865-1934) numa época de extrema carência de fármacos eficientes: “… Nesta receita entrou toda a botica, só faltando o boticário… Como ficou tonta a natureza para atender a tantas ordens ao mesmo tempo…”.

A palestra do Dr. Marco foi gratificante. Imagino colocando os vários pedaços apresentados num liquidificador. O homogeneizado é Bioética!

 

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