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86-Nada é permanente, exceto a mudança

pppppimages O título deste post é uma frase do filósofo grego Heráclito. Dei-me conta que um grande de percentual de médicos brasileiros em exercício- incluo-me- não teve nenhum contato com a Bioética na graduação e na pós-graduação. As novas gerações passaram a ter a oportunidade, contudo,  em Faculdades selecionadas.

Se a Bioética era dispensável, porque é que, agora, há um conjunto de pessoas de distintas formações profissionais que entendem que ela é essencial para a qualidade dos cuidados com a saúde à beira do leito. Propõe-se, inclusive, a conveniência da presença de  Comissões de Bioética nos hospitais.  O que foi que mudou?

A Medicina, certamente, não se presta a pensamentos estáticos. O dinamismo das tomadas de decisão nutre-se da inter-relação entre o momento do conhecimento técnico-científico e a tradição de atenção às necessidades individuais do paciente a respeito da sua saúde, nos âmbitos físico, mental e social.  Um mesmo nome de rio com água diferente num mesmo leito,  servindo a objetivo cada vez mais plural.

Há 47 anos, quando me graduei em Medicina numa Faculdade sesquicentenária e historicamente reconhecida no seu mérito de formação profissional, o mais importante para o clínico era aprender fazer o exame físico detalhado. Ele era super valorizado  como a ferramenta de trabalho essencial: as mãos para as várias formas de se palpar um fígado,  os  olhos para perceber os diversos sinais de hipertiroidismo e os ouvidos para auscultar  diferentes ruídos no  pescoço, no tórax e no abdômen tornavam-se qualificados. Precisava-se saber como praticar a maioria dos atos médicos para depender de si próprio, ao máximo, era ensinamento dos grandes mestres. O diploma do médico significava habilitação imediata para o exercício profissional- faltava só tirar, burocraticamente, um número de CRM.

Isso, num Brasil, onde a Residência Médica era raridade e as Unidades de Terapia Intensiva estavam sendo inauguradas.  Eu fui da primeira equipe de duas delas, por concurso público altamente rigoroso, no Hospital do Andaraí no Rio de Janeiro (1968) e no Hospital do Servidor Público Estadual em São Paulo (1970). No Hospital das Clínicas da FMUSP falava-se, ainda, em atendimento a indigentes, o que associava a inexistência da representação social dos mesmos ao ensino do ser médico. Estava no ar que o médico sabia o que tinha que ser feito para que houvesse o sucesso e que assim fosse feito. Procurava-se a verdade “daquele”  médico, impositiva e geradora das expectativas da confiança depositada. As iniciativas  unilaterais expressavam empenho profissional, meio caminho andado  para a obtenção do sucesso pretendido. Quantos pacientes tinham alta hospitalar ignorando a que haviam se submetido e por quem exatamente. Muito menos, participar da tomada de decisão…

Que mudanças de cenário no decorrer de cerca de 50 anos trazem a presença da Bioética?

Em primeiro lugar, houve uma preparação prévia. Foi o transbordamento de maldades em nome da Medicina que se acumularam no pós-século XIX.  Abusos foram reconhecidos, suscitaram indignação e criou-se clima para a vigilância de rumos.

Tuskegee no Alabama, Nuremberg com seu processo contundente e a contenção de idéias descontroladas de médicos de renome que se valiam do respeito pela habilidade reconhecida, foram emblemáticos. Um Nunca Mais ficou ecoando desde então.  A segunda metade do século XX já foi diferente da primeira.  Coincidiu com a eclosão da Bioética como disciplina em alguns países, sensível ao “pensamento bioético” que surgia em meio aos danos em nome da Medicina.

Em segundo lugar, houve a expansão exponencial da biotecnologia. O clássico estático há muito tempo passou a conviver e a ser substituído em sequências aceleradas por inovações cada vez mais surpreendentes, como a imagem-diagnóstica e o implante percutâneo terapêutico. Mais máquinas, menos vínculo entre pessoas, mais frieza de laudos, menos motivação do médico para o uso do exame físico, mais exigência do paciente pela tecnologia, mais dissociações clínico-laboratoriais, mais dilemas, mais conflitos. Desaguando na necessidade do olhar ciclópico, por exemplo, da Bioética.

Fico pensando como o diploma de médico perde a representação para o exercício da Medicina.  Ensinaram-me, é verdade, mas é reaprendendo que me qualifico, tornou-se o lema daqueles que valorizam a Medicina indissociada da Ética.

É o pós-graduado da continuidade do aprendizado em serviço que permite lidar com os avanços da biotecnologia -que sempre fica para trás nos Tratados de Medicina-, com a farmacologia- que cada vez mais preenche as lacunas-abismos que caracterizavam o número restrito de páginas sobre terapêutica ao final de cada enorme capítulo sobre doença, dominado pela etiopatogenia e fisiopatologia- e com a bioquímica molecular- reveladora dos segredos das perguntas inteligentes até há pouco sem respostas. E como van Rensselaer Potter (1911-2001) bem observou, este intenso progresso não pode deslumbrar-se num desvio da expressão humana da Medicina, razão de seu alerta sobre o futuro que fez merecer o cognome de Pai da Bioética.

Em terceiro lugar, nos acostumamos tanto com as inovações da biotecnologia que temos dificuldade em nos dar conta que, mesmo as incorporadas mais antigas são historicamente recentes.  Ultrassonografia, tomografia, ressonância, órteses e próteses são “jovens” métodos transformadores da prática clínica que foram rapidamente maturados no cotidiano. Assim, é de pouco tempo para cá que há mais massa crítica sobre os mesmos, que enxergamos que os benefícios associados, não necessariamente, são bem-vindos em certas situações como na terminalidade da vida. O conceito de obstinação terapêutica substitui o de obrigação terapêutica em muitas circunstâncias em prol da preservação do caráter humano da Medicina. Um processo que se beneficia do poder catalizador da Bioética.

É dos últimos anos, de fato, a maturação do conceito que o útil conceitual pode ser interpretado em certas circunstâncias como um fútil individual, ganhando o aval da Ética que se trata de zelo com o paciente e não de negligência do médico. Ventilação artificial, ressuscitação cardiopulmonar e diálise passaram a ter os critérios técnicos filtrados por poros de dimensão humana.  Não intubar, não ressuscitar e não dialisar surgiram escritos com todas as letras em evoluções médicas nos prontuários dos pacientes. Lembro-me que, quando o meu número de CRM ainda era bem alto, fui orientado por superiores a “nunca” escrever sobre inações “comprometedoras”, apesar de decididas após análise conscienciosa do caso.

A inovação do transplante cardíaco criou um novo conceito de morte. A morte encefálica, que não completou 50 anos de existência, surgiu com o objetivo de manter órgãos vivos – viáveis para serem retirados com utilidade- num paciente declarado morto, mas não desligado do suporte para a vida, se doador. A possibilidade de uso de células tronco e o destino de feto anencefálico resultaram questões para um fórum longe da beira do leito. A Bioética tornou-se essencial para tais necessidades.

Além disto, houve grande desenvolvimento das questões referentes à concepção/não concepção e ao acompanhamento pré-natal que antecipa informações, e, inclusive, desencadeia correções terapêuticas de má-formações. O olhar histórico sobre os nossos Códigos de Ética Médica dá um exemplo das transformações. O Código de Ética Médica de 1965 diz em seu artigo 56 que o médico não anunciará, clara ou veladamente, processo ou tratamento destinado a evitar a gravidez.

Em quarto lugar, a pluralização tecnológica determinou preocupações com a equidade em uma população crescente em número e em senescência e a distribuição dos recursos para a Saúde numa Medicina cada vez mais dispendiosa. O preço do uso dos órgãos dos sentidos do médico diretamente ao paciente- a observação do facies, o olhar clínico, o olhar de relance, a visão de conjunto, a palpação, a percussão, a ausculta, o sensitivo para a linguagem não verbal- é muito menor, pois eles fazem parte do exame intrínseco a uma consulta, nenhum deles é exame complementar, desdobrável e exigente de tempo, de dinheiro e dos malabarismos do sistema de saúde.

A alocação de recursos é um dos maiores problemas da Saúde de interesse da Bioética, inclusive porque põe distintas funções profissionais em campos divergentes. Gestores, auditores, peritos em seus gabinetes trilham caminhos que comungam ou não com os rumos pretendidos pela relação médico-paciente da beira do leito. Numa análise de custo-efetividade, a indicação de um exame complementar pelo clínico, que privilegia a efetividade- porque é baixa a do exame físico para o caso- pode ser contradita pelo olhar mais focado sobre o custo por “quem paga”.

Em quinto lugar, a relação médico-paciente teve profundas modificações. O médico persiste a autoridade para fazer o diagnóstico e recomendar a terapêutica, não pode deixar de ser, mesmo para os admiradores da informática e da robótica.  Contudo, o médico dos tempos atuais precisa estar conectado a normatizações internacionais de responsabilidade de Sociedades de especialidade e, ao mesmo tempo, deve evitar que as utilidades e eficácias validadas nas mesmas não sejam presumidas de modo paternalista como um benefício individual inquestionável. A transfusão de sangue em paciente Testemunha de Jeová resume bem a questão do “um bem para quem”? Há que se obter o consentimento do paciente envolvido com capacidade e liberdade opinativas e devidamente esclarecido. O oposto, portanto, do que representava, há 50 anos, a figura passiva do indigente do Hospital das Clínicas receptor de uma solidariedade interessada.

Quando ocorre uma relação médico desejoso de expressar benevolência por meio da sua Medicina – paciente não desejoso do compartilhamento em graus variáveis, mesmas circunstâncias clínicas e mesmas fundamentações técnico-científicas para tomadas de decisão provocam distintos movimentos interpessoais, num forte e habitual clima emocional.

Por tudo o que foi comentado, pelo mais que virá pela frente, inexorável, na esteira das profundas modificações multicausais previstas na sociedade, o bioamigo não gostaria de ter à disposição um Disque-Bioética? Ou será que basta traspassar o diploma de médico para encontrar respostas? Isso, caso se lembre de onde o guardou!

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