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98-Hipocrates retirou a Medicina dos deuses e Potter cuidou para evitar o endeusamento da tecnologia na beira do leito

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Maurits Cornelis Escher (1898- 1972)

A verdade é do conhecimento, o valor é do desejo. A Bioética  da Beira do leito aproxima  verdades técnico-científicas e vontades de pacientes. Pelo diálogo, o entendimento sobre diversificações acerca do conhecimento e do desejo no mundo real da da beira do leito.

O médico conhece o Livro de Medicina. Ele precisa. O paciente também, restrito e “traduzido” no que diz respeito as suas necessidades de saúde. O médico carece de se guiar por ele – é do profissionalismo. O paciente não tem esta obrigação – é da cidadania.

O jovem médico amadurece esta visão à medida que transfere o aprendizado desde o Livro para o paciente. Ele percebe que a face única a um coletivo de pacientes dada pelo Livro é ponto de partida para imprescindíveis ensinamentos da individualidade e compreensão do significado de valor é do desejo

Um mestre da beira do leito é o processo de atendimento que culmina com o não consentimento pelo paciente à aplicação de verdades da Medicina. Isto quer dizer que o paciente era “mais obediente” ao médico no passado? Quer sim. Em parte porque a palavra do médico era “lei”, autoridade única fonte da informação de Saúde.

O maior fator de “desobediência” atual é o extraordinário progresso da Medicina alicerçada na tecnologia, especialmente na alta tecnologia, por mais paradoxal que possa aparentar. Explica-se pelo  receio da submissão ao risco de adversidade. A sensação que o médico clareia o presente, mas obscurece o futuro.

A carência de recursos terapêuticos de outrora direcionava o médico para o humanismo. O mesmo se dava para o diagnóstico pela propedêutica clássica, o foco no paciente diretamente para o raciocínio clínico. O quadro “The Doctor” pintado por Lukes Fildes (1843-1927), que homenageava um médico que conhecera numa vigília de dias ao lado de uma criança de 9 anos doente, é ilustrativo. O artista hoje pintaria o médico pesquisando uma solução no computador.

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“The Doctor” Autor Lukes Fildes (1843-1927)

Não estou pregando o saudosismo destes tempos, muito menos polêmica sobre eficácia. É que a rapidez e os dupliefeitos das mudanças recentes provocaram relações flutuantes entre o tecnicismo e o humanismo, que não podem deixar de ser analisadas. Já comentei em outro post como menos pode ser mais.

Quer  para  o modo de viver, quer para o modo de morrer. Inovações de métodos trazem benefícios inéditos à sobrevivência, é verdade, mas com contrapesos de adversidades. A intenção fica imposta a um terreno movediço. A chance altamente dominante de efeitos pró-vida eleva a sintonia entre verdades do médico e desejos do paciente. O humanismo como que fica embutido na excelência técnico-científica. Quando o risco de dano é mais acentuado, a consciência sobre humanismo tende a ficar mais explícita. O processo de consentimento torna-se o instrumento visando a  conciliação entre profissionalismo e cidadania.

Quando a morte é inevitável, quando o conjunto dos métodos conceitualmente beneficentes carece do poder de proporcionar sobrevivência a uma individualidade, o antigo humanismo  recrudesce. Pois, tudo se passa como nos tempos de escassez de solução terapêutica. O niilismo da pobreza de métodos beneficentes de outrora foi substituído pela inutilidade da riqueza atual como fundamento do conceito de ortotanásia. Nova roupagem para velha relação entre verdades sobre ausência de utilidade e desejos por dignidade na terminalidade da vida.

O  tecnicismo crescente que deixa o humanismo em segundo plano, foi reconhecido por  reconhecido por Van Rensselaer Potter (1911-2001), ainda nos primórdios da mesma,  mérito  que lhe valeu o epíteto de Pai da Bioética. Assim, cerca de 20 séculos após Hipócrates (460ac-370ac) ter retirado a Medicina dos deuses e colocado em mãos humanas, Potter alertou sobre um reverso endeusamento da tecnologia na beira do leito comprometedora do humanismo.

Potter manifestou profundidade crítica ao perceber a ambivalência da “industrialização” como suporte glamourizado do diagnóstico e da terapêutica. O que estava sendo destinado a provocar um benefício colossal para a Humanidade precisava de um acompanhamento sobre a sua  real representação como um bem para a vida, num sentido global e sustentado pela interdisciplinaridade e por compromissos éticos e políticos.

A vertente clínica da Bioética abraçou o consentimento pelo paciente para assistência e pelo voluntário para pesquisa clínica. Privilegiou a vulnerabilidade do ser humano a inovações, o encaminhamento destas para a rotina, e  os conflitos  do cotidiano da beira do leito. Ela funciona como um pedágio. A verdade do conhecimento é submetida a uma cancela acionada pelo valor do desejo. Na beira do leito, quem abre a cancela para a passagem da verdade (técnico-ciência validada) é o desejo (consentimento). No Laboratório de pesquisa, quem controla a cancela para a passagem da interrogação é a exclamação do justo esclarecimento.

A Bioética, decorridos mais de 40 anos após o seu registro de nascimento por Potter,  considera primordial  o respeito a ideias construídas com boa-fé, mas exige clareza e justeza das finalidades e perspectivas realistas da utilidade, eficácia e segurança no uso. Ela procura evitar que “razões científicas” sejam argumentos aceitos mais por ingenuidade do que abrigados na eticidade. Ela vale-se de um “nunca mais” a muitas passagens da História da Medicina, traidoras  do espírito hipocrático, onde o sofrimento humano deu-se não como uma inevitabilidade da história natural da doença ou da tentativa ética de preservação da qualidade de vida do paciente, mas como decorrência de inaceitável desumanidade entre seres humanos. A humanização da beira do leito atual lida com centelhas causadas por oposições de  pensamentos sobre utilidade (Transfusão de sangue para paciente Testemunha de Jeová), responsabilidade (informação sobre método útil não disponível) e limite de coerção (exercício da virtude da tolerância).

Médico e paciente. Verdade e desejo. Vulnerabilidade, conflito e dilema. Tais conjuntos são exigentes de ajustes entre Educação e Cultura, que  podem ser facilitados pela Bioética da Beira do leito.

Bioética, não chegue à beira do leito sem ela!

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