O termo discriminação foi introduzido no Código Brasileiro de Deontologia Médica que vigorou de 1984 a 1988. Ele persiste parte do Princípio Fundamental I do Código de Ética Médica vigente: A Medicina é uma profissão a serviço da saúde do ser humano e da coletividade e será exercida sem discriminação de nenhuma natureza.
É essencial analisar o significado de discriminação de nenhuma natureza no âmbito da relação médico-paciente e na integração entre Beneficência, Segurança (Não Maleficência) e Autonomia, três princípios da Bioética.
Sendo discriminação um ato de separar, tratar de modo diferente e desigual em relação a demais e sendo a Saúde um direito de todo cidadão, fica evidente que médicos e pacientes devem interagir com a Medicina visando ao benefício, segurança e respeito a preferências e a valores, independente de eventuais diferenças de gênero, etnia, cor, religião, etc… É o que vem à mente em primeiro lugar.
É de se considerar, contudo, que ao mesmo tempo que discriminar significa entender que determinado paciente não teria o mesmo direito que os demais ao acervo da Medicina, é de se ter em conta que ele costuma ter certas peculiaridades que merecem avaliações individualizadas- discriminações em prol da utilidade e da eficácia. Mesmos diagnósticos, distintas expressões e necessidades.
Assim, tomadas de decisão, caso a caso, na beira do leito, partem de um ponto comum onde há idealidades disponíveis para todos -nenhuma discriminação à pessoa em si- e direcionam-se para ajustes determinados unicamente pela aplicação dos princípios que visam ao benefício conceitual, à segurança individualizada e à participação autonômica, considerando que a equidade faz-se presente.
Indicações, não indicações e contra-indicações de métodos por parte do médico combinando-se com consentimentos e não consentimentos do paciente numa plataforma de boas práticas e respeito à dignidade do ser humano, provocam infinitas resoluções despidas de discriminação como ofensa intencional. É o que se ensina, o que se aprende e o que se pratica em obediência a um compromisso histórico do exercício da Medicina, e que, motiva o acima referido Princípio Fundamental I.
Todavia, as calidoscópicas resoluções, ao resultarem revestidas do acato às individualidades, traz a necessidade de ponderar que uma coisa é discriminar no sentido de desrespeito à pessoa e outra coisa é discriminar os componentes do caso clínico no sentido de avaliar bem, respeitando a pessoa ao distinguir o que é benefício e o que é malefício para a circunstância clínica em questão.
Portanto, a redação sem discriminação de nenhuma natureza do Princípio Fundamental I deve ser entendida no sua conotação de fato negativo, na privação de vantagens, na injustiça, no preconceito. A discriminação neste sentido, pode ser por omissão ou por comissão. A primeira refere-se a não praticar o validado pela Medicina pelo entendimento de que há diferenças que desmerecem, caracterizando negligência. A segunda implica numa visão de menosprezo pelo ser humano que induz aplicar métodos indevidos, caracterizando imprudência. A Bioética renasceu no século XX como alerta especialmente a esta modalidade de seleção para a realização de atos contrários à dignidade humana.
A profissão de médico é indissociável de um imperativo moral consigo mesmo e da herança de um patrimônio da humanidade. Geração a geração observa-se o mimetismo de atitudes intencionalmente beneficentes, ajustáveis a cada época e tanto quanto possível descartadas da reprodução dos exemplos indevidos.
O médico, ao se habilitar a interagir profissionalmente com a sociedade por meio da obtenção do número do CRM, cumpridas as exigências de lei, dele se espera o propósito de aplicar métodos da Medicina visando ao benefício individual e/ou coletivo consciente da vulnerabilidade do ser humano.
Toda pessoa é intrinsecamente vulnerável, depender de outra a faz assim, ademais está sujeita à dor, ao sofrimento e à doença. Portanto, o paciente é um vulnerável que depende da expertise do médico para reverter/reduzir perturbações do seu bem-estar de competência da Medicina.
Eventual discriminação em seu sentido ofensivo acresce vulnerabilidade. O médico não deve ser “etiopatogenia” da mesma, pelo contrário, o comportamento segundo a Ética é de acolhimento. Peculiaridades étnicas, econômicas, religiosas, sociais, ideológicas e quaisquer outras podem ser dados de anamnese nunca além da finalidade de contribuir para embasamentos epidemiológicos, nosológicos ou atitudinais, fundamentos para diagnóstico, terapêutica e prevenção, consonantes com o estado da arte. Eventuais conflitos relacionados à transfusão de sangue (paciente Testemunha de Jeová), a portadores de Anemia falciforme (negros) ou de doença de Tay-Sachs (judeus), por exemplo, não devem ser creditadas à discriminação ofensiva.
Admitindo-se, pois, que a palavra discriminação subentende sob o aspecto linguístico, mais do que tão-somente o sentido constitucional do atentatório aos direitos e às liberdades fundamentais, faz-se necessário observar o conteúdo textual de outros artigos para esclarecer limites na interpretação do primeiro Princípio Fundamental.
Neste contexto, o Princípio fundamental VII – O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente – sustenta a autonomia do médico valorizando ditames de consciência e desejos.
É ético, pois, pelo ditame de consciência, recusar, por exemplo, a ordem de um superior hierárquico em Serviço onde haja outros médicos habilitados para que proceda a um abortamento sob ordem judicial, reforçado pelo Direito do Médico IX – Recusar-se a realizar atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência.
Assim como é ético, rejeitar, por não lhe satisfazer, um encaminhamento de colega para que realize um procedimento por conhecer um histórico de habitualidade de contencioso por parte do paciente.
Já o art. 36 § 1°- Ocorrendo fatos que, a seu critério, prejudiquem o bom relacionamento com o paciente ou o pleno desempenho profissional, o médico tem o direito de renunciar ao atendimento- ressalva a possibilidade ética de o médico propor interromper o atendimento, caso entenda que ocorre mau relacionamento prejudicial ao atendimento.
Em tempos atuais do exercício profissional, cresce a chance de entendimentos de violação de direitos adquiridos. Desta maneira, os ditames de consciência e de desejos do médico precisam ficar bem explícitos no prontuário do paciente para contestar imputações de desrespeito ao Princípio Fundamental I.