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59-Consentimento Livre e Determinado

alternativasEm algumas décadas, a autonomia tornou-se bioeticamente correta. O paternalismo, ao mesmo tempo, tornou-se fator de risco à coerção.

O fato é fruto da necessidade de salvaguarda a narcisismos malignos que aconteceram na primeira metade do século XX que vestiram, indevidamente, pensamentos egocêntricos com o uniforme de Ciência da Saúde.

O benefício validado e a segurança individualizada passaram a ser matéria-prima dos alicerces das recomendações médicas com graus de utilidade e de eficácia interrelacionados com as diversificações das circunstâncias clínicas. O paciente ciente das mesmas ganhou o direito de emitir concordância ou discordância parcial ou total, na figura de um consentimento – ou não- renovável e revogável a qualquer momento.

O processo de tomada de decisão tornou-se altamente dinâmico com vais-e-véns impulsionados por distintas energias. Entre elas, a emissão de um novo diagnóstico,  a modificação de estratégia terapêutica,  a visão leiga receptora da informação sobre a própria situação clínica. Se o livro ensina o que fazer, a beira do leito faz aprender como deve ser feito.

A sala de aula chamada beira do leito reforça que o médico deve se dispor a aplicar autonomia pois cada questão que “vai cair na prova” caso-a-caso terá respostas teóricas pelo conhecimento profissional técnico-científico e práticas pela compreensão humana. Figuram-se formulações de livre-escolha, que, elaboradas pelo médico, ganham justificativas de gabarito pelo paciente, ou seja, este é quem define a “resposta correta”.

Todavia, o paciente nem sempre se mostra disposto a exercer a escolha. Ele se põe  receptor passivo da recomendação médica, confiante que há valor do Juramento de Hipócrates simbolizado na palavra doutor que lhe soa saber e sabedoria.

Assim, uma atitude com gradações de autonomia e de paternalismo costuma acontecer como ponto de equilíbrio do mundo real do processo de tomada de decisão na beira do leito. Nele o médico sente-se eticamente à vontade para insistir com o seu ponto de vista da conduta cientificamente validada e não ultrapassar um limite interpretável como já no território da coerção.

É aquela situação em que o médico, percebendo que o paciente não se mostra disposto a dar o consentimento, lança mão de adjuvantes como pedir ao paciente que pense mais um pouco sobre a recomendação, sugerir que ouça uma segunda opinião ou convocar familiar para esclarecimentos. E, ao final, aguarda a “última palavra” do paciente que  mesmo dissonante da sua, deve respeitar, com a ressalva de eliminar um iminente risco de morte evitável.

A Bioética da Beira do leito na interface com a Medicina cuida muito para que o consentimento- ou não- pelo paciente esteja apoiado numa forte compreensão do que se passa e dos rumos previstos pela aplicação ou pelo nihilismo. E, também, para que o processo fique isente de interferências sobre a liberdade do paciente em se expressar. O objetivo da neutralidade das exposições é válido e um dos seus subprodutos é aprender a comunicar sem conotação de insegurança profissional. A dúvida do médico não é sobre o que é melhor fazer, a dúvida é sobre se há a autorização do paciente para fazer.

Já na interface da Bioética da Beira do leito com a Filosofia, há a questão do quão real é a liberdade de uma pessoa para a emissão de um consentimento. Até que ponto o  arbítrio pode ser pelo sim ou pelo não. A qualificação do Consentimento como livre, esclarecido, renovável e revogável subentende que a Medicina atual respeita a liberdade, mas não permite afiançar o seu grau em cada comportamento do paciente.

Escolhas pelo paciente podem estar condicionadas por rotas sinápticas que superam outras e determinam “única opção possível”. Não vamos entrar em discussões sobre Libertarianismo e  Determinismo aplicáveis a tomadas de decisão sobre a própria saúde, mas a  beira do leito contribui com algumas lições neste sentido.

Um aspecto determinista é a presença de pré-condições, antecedentes que ensinam o paciente a enxergar uma forte relação de causa e efeito, sofrimentos como a dor intensa, recuperações de qualidade de vida pela utilização de um método. Criam-se normas de reação que não deixam o paciente seguir outra rota de decisão. E, assim, não havendo o “can do otherwise”, fica conceitualmente abalado o conceito de  liberdade de escolha.

Entendo que a vivência da beira do leito é simpática ao chamado Compatibilismo, que vê compatibilidade entre o Livre arbítrio de um sim ou não igualmente possíveis e o Determinismo de um sim ou de um não condicionados.

Um argumento é que a  experiência com a doença ou com uma situação clínica direciona para “apenas uma escolha” pelo paciente. Quer para a sintonia com a recomendação médica pelo reforço positivo de um bom resultado prévio, quer pelo reforço negativo do mau resultado de fato vivenciado ou acontecido com terceiros. Lembro-me de um período da Cardiologia em que o paciente tinha mais receio do cateterismo cardíaco do que de uma operação cardíaca, devido a informações recebidas de outros pacientes nas salas de espera do hospital.

A vivência positiva parece dar uma organização àquele “caos” que  ocorre quando a mente do paciente se vê frente a uma situação nova a ser resolvida e, desta forma,
contribui para uma desejável repetição do consentimento prévio. Por exemplo, não  é simples alguém interromper o seu “tranquilo” cotidiano pessoal e profissional e se sujeitar a desconfortos para cumprir uma recomendação médica. No meu campo de atuação por mais de quatro décadas, dois cenários me impressionaram.

O primeiro cenário é o do paciente que sabe que o uso da penicilina benzatina é eficaz para evitar uma agressão reumática à valva já lesada e que, por assim acreditar,
movimenta-se a cada três semanas para receber a injeção desagradável. Se ele não
fizesse desta forma, a sua crença na utilidade da penicilina introjetada a partir da recomendação médica lhe soaria falsa. Ele age, fundamentalmente, pelo compromisso consigo. Ele só tem uma opção, não consegue “do otherwise”.

O segundo cenário é o do paciente que já foi submetido a uma substituição da válvula cardíaca que lhe fez recuperar a boa qualidade de vida durante muitos anos. Quando o médico lhe informa que manifestações clínicas surgidas representam o final do “prazo de validade” da bioprótese que até então solucionara a sua doença, o paciente não costuma rejeitar o consentimento a uma reoperação  pressupondo que irá reproduzir  nova sequência de anos com boa qualidade de vida.  Ele não consegue “do otherwise”, consente pelo determinismo da vivência com aquela situação de saúde.

É evidente que na prática vale o sim ou não do paciente sem necessidade de esclarecimentos de conotação metafísica. Se tão livre ou não tão livre cabe dentro do interessante conceito da ilusão verdadeira. Todos que sabem que é a terra que se movimenta veem o sol caminhar do leste para o oeste e é o que, de fato, sustenta certas providências em função do desejo de se expor mais ou menos ao astro-rei ou à sombra.

A Bioética da Beira do leito admite que mesmo que não aconteça o Livre arbítrio em seu aspecto de não apriorístico sim ou não, associá-lo ao princípio da autonomia é útil no sentido de proporcionar a mais adequada adaptação humana  à satisfação das necessidades de saúde pelo paciente.

Há uma “verdade” útil, muitas vezes tornada certeza pelos resultados, que provoca flexibilidades cognitivas do paciente perante impactos exógenos. Muitos dos que se dedicam ao estudo interdisciplinar do comportamento humano  entendem como capacidade corretiva dada pelo evolucionismo, o que traz uma fundamentação ontológica ao processo do consentimento livre e esclarecido no cuidado com a saúde.

A Bioética da Beira do leito é sensível a tudo que se ilumina pelo ontológico.

 

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