A Ética diz ao médico o que lhe é vedado fazer. A Bioética lembra-lhe que deve ter respeito com o paciente. Parece simples, o que não é vedado pode e o respeito sustenta a atitude correta. Mas não é, muito pelo contrário. Pessoas são complexas. Num clima de doença, as modalidades de reação são infinitas.
As recomendações sobre a moralidade do exercício profissional passam a vigorar após a diplomação, o juramento tradicional e a recepção do número de CRM e sustentam a plenitude do ser médico na relação Medicina- médico-paciente-instituição de saúde e sistema de saúde. De algumas décadas para cá, aulas práticas sobre Ética sucedem-se na Residência Médica. É de se perguntar: Quantos recém-formados podem se manifestar sobre o Código de Ética Médica como fazem sobre os aspectos técnicos do diagnóstico e do tratamento? Creio que uma minoria seria a resposta. A não valorização passa por uma certa visão de obviedade, afinal eles são bem intencionados, não desejam provocar danos ao paciente e estão se esforçando para ser um médico cada vez melhor.
Não seja negligente, não dê atestado falso, não faça nenhum tipo de violência ao paciente, não desconheça o saber técnico-científico que é da sua competência profissional são alertas sobre o comportamento que se espera do médico. Porque será que estas obviedades precisam ser normatizadas? Porque se convencionou que é melhor que haja um Código para o médico por escrito?
Uma primeira resposta é que há um percentual de médicos que desrespeita os princípios fundamentais, minoria é verdade, mas existente, geração a geração. Não se deve supor que seja um contingente em extinção. Os números de expedientes analisados e de penas aplicadas pelos CRMs em todo o Brasil atestam que não se pode descuidar da pedagogia ética. O diploma de médico não é um salvo conduto para qualquer prática em qualquer situação sob qualquer pretexto.
Uma segunda resposta tem conotação histórica, implica num passado não tão distante. O retrovisor mostra um conjunto de má ações praticadas em nome da Medicina que mancham o ser médico e que demandam o rigor da atenção a atitudes desenvolvidas na beira do leito. O blog bioamigo já analisou vários deles que se pretende Nunca Mais!
Uma terceira resposta tem implicação com um eterno amanhã sempre mais robusto de tecnologias que, progressista, objetiva a melhora da Saúde, mas que, intimista, traz potencial de algum tipo de dano à natureza humana do paciente. Van Rensselaer Potter (1911-2001) percebeu e se tornou o Pai da Bioética com o registro de nascimento no livro A bridge to the Future (1971).
Uma quarta resposta é que a sociedade está sempre em transformação, a moral muda periodicamente, fatores sociais, culturais, religiosos, econômicos influenciam regionalidades que incluem o feedback com a Ética médica. Autonomia e Ortotanásia ganharam aval da Ética recentemente, após anos considerados como má-práticas, inclusive ato criminoso.
O médico é um ser humano. Cada um tem o seu caráter e as suas vulnerabilidades. Por isso cada um tem um número diferente de CRM e responde pelo mesmo. A profissão é um aprendizado recorrente do clássico e da inovação. É impossível ter certeza do comportamento ilibado que se espera dos mais de 400 mil médicos do Brasil, mais da metade em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. O que significa a necessidade de observação permanente dos mesmos e a disponibilidade de instrumentos corretos de apreciação de indícios de ilícitos éticos.
Um aspecto da eticidade que associa o constante nas quatro respostas acima é a preocupação com a discriminação. Ela é mencionada no art. 22 do Código de Ética Médica vigente: É vedado ao médico tratar o ser humano sem civilidade ou consideração, desrespeitar sua dignidade ou discriminá-lo de qualquer forma ou sob qualquer pretexto.
Qualquer manchete sobre ocorrências de discriminação na Saúde traz indignação. Todavia, nem sempre a discriminação fica bem evidente, quem é que discrimina quem e se o vilão é o médico ou é o sistema de saúde.
Por isso, é importante haver um aprofundamento na questão das diferenças entre pessoas que causam diferenças nos direitos e na atenção a interesses e necessidades. Ainda mais quando se trata da Saúde, de qualidade de vida e de sobrevida. Um não atendimento do paciente por julgamentos morais sobre o mesmo é intolerável.
A doença em si já se constituiu em fator de discriminação. Tuberculose, lepra e AIDS já foram pretextos, estereótipos, para a recusa de atendimento por médico. Melhores conhecimentos e recursos de proteção determinaram um clima menos indutor de atos discriminatórios do profissional de saúde.
No âmbito da relação médico-paciente, a discriminação pode estar presente numa tomada de decisão, numa aplicação técnica ou numa comunicação. Em decorrência, o discriminado pode perder chances de benefício, de segurança e de participação ativa no que diz respeito a sua saúde. Nem sempre a discriminação resulta de uma intenção de assim provocar, mas a não intencional, que costuma ser dependente de interpretações de normas e de restrições, tem também o seu peso ético.
Há várias modalidades de discriminação que prejudicam a equidade nos cuidados com a saúde tanto para pacientes sob cuidados quanto para aqueles que procuram um início de atenção a suas necessidades de saúde.
Etnia, cor da pele, crença religiosa, gênero, orientação sexual, local de nascimento, local de moradia atual, estado civil, idade, status social e econômico, opinião política, má-formações físicas, invalidez e doença mental são pontos de impacto na discriminação, que, inclusive, podem se entrelaçar em mesmo caso. Podem-se acrescentar certos comportamentos interpretados como de chatice, implicância, oposição sistemática e reivindicação recorrente que podem criar barreira interpessoal na relação médico-paciente e que potencializam equivalentes discriminatórios na beira do leito, não infrequentemente sob a forma de sutilezas.
Creio que o “berço” atual representa menos fonte de discriminação do que no meu tempo de recém-formado, a sociedade evoluiu positivamente em vários aspectos da diversidade do ser humano, com reflexo na relação médico-paciente. Da mesma maneira, houve mais conscientização sobre os males de privilégios na Saúde.
O privilégio é um corolário da discriminação que sustenta mais aceitação, mais informação, mais atenção, mais ajustes, mais disponibilidades. É preciso muito equilíbrio na análise das implicações entre nós brasileiros da categorização SUS, convênio e particular acerca do binômio discriminação-privilégio. O pentágono dos cuidados com a saúde evidencia a pluralidade de interações entre os cinco ângulos que pode impactar nas nossas realidades.
É essencial considerar que eventuais pontos de vistas opostos não caracterizam, necessariamente, discriminação quando derivam de atitude autonômica bilateral, não constituindo, assim, uma negação de direitos de provocação heteronômica.
Neste contexto, o Código de Ética Médica vigente inclui o Princípio Fundamental VII: O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente e o Direito do Médico IX: É direito do médico recusar-se a realizar atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência.
Por fim, o retrovisor da História mostra que o médico também foi alvo de discriminação governamental, hierárquica e social. O médico precisa preservar a sua liberdade de consciência, a defesa de seus interesses pessoais e de classe, idealmente cuidando para nem quebrar a confiança nele depositada e nem desconsiderar as necessidades do paciente. Não faltam circunstâncias onde ajustes em prol de um consenso adquirem complexidade que emperram uma progressão. Por exemplo, o médico que se recusa a um atendimento por razões morais, como a prática de um aborto judicialmente autorizado, estará fazendo uma transgressão moral para si quando indica um colega? Ou estará, tão-somente, cuidando dos melhores interesses da paciente?
Tudo isso é razão para a presença do primeiro Direito dos Médicos no Código de Ética Médica vigente: É direito do médico exercer a Medicina sem ser discriminado por questões de religião, etnia, sexo, nacionalidade, cor, orientação sexual, idade, condição social, opinião política ou de qualquer outra natureza.