O efeito inibitório da bula do medicamento sobre o paciente pela ênfase na adversidade realça três lições para o médico: a) paciente é plural como ser humano; b) paciente valoriza o esclarecimento sobre adversidades; c) consentimento pelo paciente é essencial.
A) Paciente é plural como ser humano: Há tendência em identificar a situação clínica como caso (uma infecção), doença (pneumonia) ou doente (bronquítico que infectou). Este modo faz a ligação direta do diagnóstico com a conduta terapêutica, margeando a pessoa enferma, assim desconsiderando certas peculiaridades do ser humano que ela é.
Por um lado, o hábito arraigado é fator de equidade, as desigualdades individuais são coletivamente equalizadas nas políticas de atenção à Saúde, mas por outro lado, o bloco único não pode deixar de exibir as marcas da formação a partir de diversidades cidadãs.
Ouve-se que o médico não tem tempo de se envolver com detalhes da pessoa-paciente, que a prescrição do antibiótico- no caso citado- sustentada pelo correto diagnóstico é o cumprimento da Ética no tempo que cabe à atenção, em face da sequência de atendimentos a serem cumpridos.
Em decorrência, a relação do paciente com a bula do medicamento é que faz as vezes da incursão na individualidade que não foi convenientemente esclarecida na relação médico-paciente.
Em decorrência, a relação do paciente com a bula do medicamento é que faz as vezes da incursão na individualidade que não foi convenientemente esclarecida na relação médico-paciente.
É evidente que a maioria dos pacientes comporta-se obedientemente à conduta prescrita. O que, de certa forma, encobre o fator individualidade. Traz um certo relaxamento para as iniciativas médicas de produzir a compreensão do paciente. Acaba sendo um reforço do paternalismo. A convicção que assim deverá ser feito porque foi tecnica e cientificamente fundamentado por quem é capaz de assim fazê-lo.
O médico que trabalha em ambulatórios sabe que é desta forma que cada o próximo é (bem) atendido. Uma vez terminada a consulta, reforçada ou não por um atendimento multiprofissional de enfermagem, farmácia, serviço social e psicologia, o cumprimento é da responsabilidade do paciente. Ou seja, as diversidades do ser humano irão dominar, além, evidentemente, das variações individuais de resposta clínica.
A Bioética valoriza o respeito às peculiaridades de ser humano por meio do diálogo esclarecedor sobre os entendimentos de prós e de contras na relação médico-paciente. A bula do medicamento pode funcionar como um roteiro dos ítens a serem abordados pelo médico com o paciente, segundo seu modo de promover a adequada sintonia.
B) Paciente valoriza o esclarecimento sobre adversidades: Houve mudança drástica na intenção do médico de revelar adversidades. Eu fui orientado por vários professores na década de 70 a enfatizar a indicação de um método como benefício para atender às necessidades clínicas e evitar expor as suas imperfeições. Entendia como precaução contra o efeito nocebo, contra uma visão pessimista, contra um excesso de sofrimento antecipado. Pressupunha-se que no íntimo o paciente conhecia a possibilidade do mau resultado, mas de um modo difuso. Explicações a posteriori, caso ele, de fato, ocorresse. Havia, inclusive, o paciente que solicitava para não ser informado, preferia só conhecer o que de bom aconteceria.
O treinamento com a pesquisa clínica deu um certo impulso para uma nova mentalidade na assistência, que tem sido disseminada para quem não se envolve com voluntários.
Percebe-se que o dever de apontar os aspectos negativos em potencial de inovações migrou para a revelação dos efetivamente reconhecidos, quando da assistência. O Médico como bula.
A Bioética prefere que seja um esclarecimento espontâneo do médico, parte do seu cuidado com a segurança do paciente e do seu respeito pelo direito do paciente à autonomia. Todavia, observa-se que Serviços e Sociedades de especialidade têm recomendado “maior garantia” do que o simples registro no prontuário que houve o esclarecimento, burocratizando o esclarecimento à semelhança do que ocorre na pesquisa. O voluntário da pesquisa inspirou um voluntário de assistência.
Há um clima de Medicina defensiva nesta postura, uma assinatura que atesta compreensão, mas, é polêmico o seu valor jurídico. Uma forma de “provar” que a adversidade era sabida pelas imperfeições da Medicina e que ela não aconteceu por inabilidades do médico, ou seja, que foi, de fato, uma “iatrogenia ética”. Obviamente, uma assinatura atestando a compreensão poderá trazer uma falsa “eticidade”, quando a adversidade decorreu de uma imperícia no manejo de um método – “iatrogenia aética”. O paciente deu o consentimento sabendo que poderia acontecer danos por imprevisibilidades do método, mas não consentiu para o dano por erro profissional.
Uma preocupação da Bioética da Beira do leito é que o papel físico desestimule o papel pedagógico do contato verbal com o paciente para que o jovem médico crie o hábito do esclarecimento de fato dialogado. pra que aprenda as principais dúvidas e construa o seu roteiro com esta matéria-prima. Poucos perguntam se podem morrer no procedimento, muitos indagam quando poderão voltar à rotina. A informação de um risco da ordem de 2% soa aceitável pelos pacientes, mas a necessidade de um repouso mais prolongado gera insatisfação.
Há dúvidas se as informações por escrito sobre as vantagens e as desvantagens estejam funcionando como roteiros para um cara-a-cara entre médico e paciente. Pode ser uma pseudo- defesa, um desserviço à relação médico-paciente e um estorvo em tempos de prontuário eletrônico redentor de papelada.
O que se observa crescente, neste contexto, é o chamado efeito Dr. Google, pelo qual o paciente toma a iniciativa de obter os esclarecimentos sobre as probabilidades de acontecer o aquém do planejado (ineficácia) ou o além do desejado (comprometimento de órgão saudável até então). Favorece o cara-a-cara médico-paciente! Ponto para o Dr. Google.
C) Consentimento pelo paciente é essencial: Uma coisa é estar esclarecido, saber que adversidades podem ocorrer. Outra coisa é a reação do paciente ao esclarecimento. Vai desde inércia até movimentação para uma segunda opinião.
A leitura da bula do medicamento é feita em ausência da pessoa do médico, é pós-tomada de decisão, envolve um novo filtro de consentimento à própria decisão. Ela é culturalmente vigorosa, entre nós. Já a postura de consentimento antes da tomada de decisão, autorizadora ou não do que está sendo recomendado, faz-se – respeitada a idealidade- na presença do médico, situação que traz um certo viés de autenticidade da vocalização.
Ambivalências acontecem, vergonhas eclodem, inibições perante a “autoridade” ocorrem. Acresce o receio do ônus da responsabilidade da decisão. A eventualidade do paciente deitado no leito traz uma posição de inferioridade de influência no processo de consentimento. A experiência ensina que quando o paciente deseja argumentar e contra-argumentar, ele costuma sentir-se mais à vontade sentando-se. É mudança postural por mais poder e dignidade que simboliza o exercício do princípio da autonomia.
Em função da Ética, estamos comentando a respeito de um paciente capaz e sem risco iminente de morte (emergência). O representante legal ou representante indicado assume pelo incapaz e o médico pelo paciente gravíssimo.
A situação do médico é de paternalismo forte, eticamente justificável, mas que inclui certas dificuldades no preenchimento de critérios para a iminência da morte. Eu tive perfeita conscientização desta obscuridade numa situação de greve de fome quando o exame laboratorial do paciente revelou hipopotassemia de 2, 2 mEq/l. Qual seria o impacto sobre o artigo 51 do então vigente Código de Ética Médica? É vedado ao médico alimentar compulsoriamente qualquer pessoa em greve de fome que for considerada capaz, física e mentalmente, de fazer juízo perfeito das possíveis conseqüências de sua atitude. Em tais casos, deve o médico fazê-la ciente das prováveis complicações do jejum prolongado e, na hipótese de perigo de vida iminente, tratá-la.
A situação do representante indicado é mais confusa. Desde a justeza do seu nome até a superposição ao que o próprio paciente faria se capaz estivesse. O médico costuma se sentir pouco à vontade para comentar sobre estes aspectos nas consultas rotineiras com o paciente capaz e “longe” da situação.
A Bioética inclui este papel social de alertar a sociedade. O difícil é estruturar os processos sobre um tema que é tabu. As Diretivas Antecipadas de Vontade são um caminho, mas é incipiente entre nós. Não deixa de ser uma bula!
Por fim, trago um texto do Guia para Redação de Bula produzido pela ANVISA, para reflexão do bioamigo: A bula é o principal instrumento que permite ao paciente saber com exatidão como usar e como evitar os riscos do consumo do medicamento prescrito pelo seu médico ou cirurgião dentista … A bula é um tipo de texto (ou gênero) desenvolvido, usado e interpretado a partir de situações recorrentes definidas e que servem para estabilizar a experiência e dar a ela coerência e significado…