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143-Rotúlo indelével

Homem com  48 anos de idade é trazido ao PS de hospital de ensino após ser encontrado inconsciente na rua. Ele recebe  o diagnóstico de alcoolismo. Na passagem ao plantão noturno, o “box 11” é transmitido com pouca ênfase e fica “esquecido” em meio às agitações de chegadas e de gravidades. O plantonista da manhã  seguinte tem o cuidado de reexaminar o paciente e uma tomografia do crânio identifica hemorragia cerebral.

O caso após o óbito foi encaminhado à Comissão de Ética Médica e subsequentemente ao Conselho Regional de Medicina. Não houve evidências que os vários médicos que transitaram no PS ao largo deste paciente deixaram de ser prudentes e zelosos com os muitos outros que lá passaram no mesmo período. A desatenção foi seletiva, precipitada por uma tríade de atitude: diagnóstico apressado, preconceito com a etiopatogenia, negligência no controle evolutivo. Punições aconteceram.

Classifico a origem da infração ética como Rótulo Indelével.

É clássico que a “informação sobre o conteúdo clínico” de um paciente requer dinâmica de raciocínio clínico, que ao mesmo tempo procure a verdade pelas hipóteses e deixe uma ponta de dúvida no que resultar entendido como encontro da certeza. Este ritual de elaboração de juízos acerca da doença não imobiliza tomadas de decisão terapêutica e tem a cautela de manter um alerta sobre o potencial de dissintonia entre hipótese certamente mais provável e certeza propositiva. Nesta lógica insere-se a conveniência de confirmações diagnósticas geradas pela evolução clínica sob efeito da conduta  terapêutica. Passes e repasses.

O caso em questão traz uma variante da violação de fundamentos da atenção clínica. Inclui o pecado capital da inobservância da neutralidade que o médico deve preservar a respeito de aspectos morais emanados do paciente, quaisquer que eles possam ser e que lhe soam negativamente. Ainda mais quando eles apresentam interligações diretas com as circunstâncias clínicas. Neste contexto, se já não bastassem os valores que se esperam do médico-cidadão, o art. 23 do Código de Ética Médica vigente é claro: É vedado ao médico tratar o ser humano sem civilidade ou consideração, desrespeitar sua dignidade ou discriminá-lo de qualquer forma ou sob qualquer pretexto.  Condenados por crime hediondo têm estrutura de atendimento médico à disposição, assim como pacientes que agridem médicos covardemente não perdem o direito à universalidade, integralidade e equidade do SUS. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa, ensina a lógica popular  e, pela experiência, ela se aplica à beira do leito.

Os “bêbados de rua” que frequentam as unidades de Pronto Socorro não têm um CID empático e cuidar da sua ressaca parece de somenos importância num ambiente de alta rotatividade de pacientes e de gravidades extremas que caracterizam os Serviços de Emergência. Eu convivi com grande número deles que viviam na Praça da República, no defronte Hospital Souza Aguiar, no Rio de Janeiro. Sempre os mesmos, várias vezes por semana, contumazes conhecedores da rotina que já chegavam estendendo o braço para a punção venosa. Ainda um estudante de Medicina, eu aprendi, então, que cabia ao médico fazer o seu papel profissional e que, qualquer aspecto adicional deveria ser respeitado, mas que fosse passado para a esfera do Serviço Social, que, logo percebi, tinha poucas condições de conseguir soluções.

A “competição” entre riscos iminentes de morte que determina prioridades – inclusive coloridas- fundamenta distinções de cronologias de atenção. O “tão-somente” alcoolismo agudo “sem lenço nem documento” admite, assim, o risco da desatenção porque rebaixado na escala.

É pior, evidentemente, quando a hipótese diagnóstica- primeira e única-, que causa más reações pelo pejorativo, estiver equivocada, pois provoca desvio da necessária atenção perante iminente risco de vida, como exposto no caso acima relatado. Tudo se passa como se houvesse um automático direcionamento para o lado social, desvalorizando a apreciação pelo lado médico. Desnecessário enfatizar o quanto tempo é prognóstico em Medicina em casos agudos e com história natural rapidamente desfavorável.

A Bioética da Beira do leito reconhece que Rótulo Indelével impede o usufruto da Beneficência, afastando métodos úteis e eficazes para a real circunstância clínica, compromete a Segurança do paciente pela inobservância de cuidados obrigatórios e faz com que o precário atendimento sustente-se num indevido Paternalismo forte.

Uma lição é reforçar que os passo-a-passos da avaliação clínica não podem ser claudicar por esterótipos. É sabido que antecedentes pessoais não se obrigam a ser causa de novo quadro clínico. A preocupação com diagnósticos assim equivocados com forte desequilíbrio entre objetividade e subjetividade ilumina a validade da arte em Medicina em xifopagia com a ciência.

Um dos preceitos da arte em Medicina é a contenção da situação de refém da ilusão, por parte do médico. Uma ilusão que até pode ser  a do tipo “real”, de fato vista, como estar na praia e acompanhar o sol movimentando-se do leste para o oeste.

A questão de primeiro interpretar e depois ver com olhos técnicos liga-se a desequilíbrios da valorização interpessoal. O engano semiótico fica determinado mais por instigação de preconceitos pessoais do que por aplicação de conceitos profissionais. Cola-se uma versão da realidade com tal aderência que a faz monopolizar o ambiente.

Caldo de cultura fértil para o desrespeito ao Art. 1º  do Código de Ética Médica vigente: É vedado ao médico causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência. Parágrafo único. A responsabilidade médica é sempre pessoal e não pode ser presumida.

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