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371- O sigilo médico está cheio de dedos

O sigilo médico foi consagrado após Hipócrates (460ac-370ac) firmar que aquilo que no exercício ou fora do exercício da profissão e no convívio da sociedade, eu tiver visto ou ouvido, que não seja preciso divulgar, eu conservarei inteiramente secreto. À época, dados e fatos obtidos desde o paciente eram confidências a serem assim preservadas por um compromisso profissional do médico de se calar para terceiros.

A concepção da eticidade envolvia tão-somente o comunicado entre duas pessoas, o paciente dono do seu nariz, livre para se expor a quem quisesse como fazia para o médico e este sensível ao constrangimento porventura provocado por eventuais revelações, determinado a restringir-se da liberdade sobre a difusão de informações. Estabelecia-se, assim, a responsabilidade profissional de respeito à privacidade do paciente como uma etapa subsequente ao compartilhamento da intimidade com o médico. Comprometimento que embutia a força da confiança interpessoal essencial para a prática da Medicina que substituía a crença no poder dos deuses.

A Medicina foi mudando e a questão do sigilo médico precisou ser ampliada em função da multiplicidade de profissionais envolvidos em cada caso. Brechas de vulnerabilidade tornaram-se, por isso, inevitáveis, atreladas à própria condição humana curiosa, tagarela, intemperada e personalista que no século XVIII foi resumida no pensamento irônico de Benjamim Franklin (1706-1790): Três pessoas são capazes de guardar um segredo, se duas delas estiverem mortas.

O século XX de tantas iniciativas – não  bem sucedidas no Brasil- de isolamento da beira do leito das contribuições da ilha de Cós, consolidou a rotina da elaboração multiprofissional do prontuário do paciente, o atendimento hospitalar com sua natural maior visibilidade dos acontecimentos e presença de muitos agregados expandiu-se, a interdisciplinaridade ligada à especialização expansora dos partícipes tornou-se fator de excelência no atendimento, mais categorias profissionais tornaram-se da saúde. assim agregando-se ao clássico binômio médico-enfermeiro e trazendo o risco a revelações indevidas da multiplicação do número de pessoas que por dever de ofício tomam conhecimento do contexto sigiloso. Mais olhos, mais ouvidos e mais bocas em permanente incumbência provocaram a expansão da acima frase hipocrática para a composição de todo um capítulo desde o nosso primeiro Código de Ética Médica surgido em 1929, que iniciava com a lembrança: O segredo médico é uma obrigação que depende da própria essência da profissão. 

O século XXI trouxe a  expansão do prontuário eletrônico e a sedução explosiva e contagiante dos aplicativos em smartphones com uma vantagem da celeridade, instantaneidade mesmo, muito apreciada na beira do leito. A ponta do dedo associou-se com privilégios à tríade olhos-ouvidos-bocas como vilão em potencial da preservação do sigilo profissional. O anatômico boca a boca da preocupação de Hipócrates transforma-se, então, num eletrônico teclar-compartilhar redutor de prazos entre emissão e recepção de novidades. A circunscrição da via oral a uma quantidade de pessoas que podiam ser contadas nos dedos de uma mão deu lugar a possibilidades preocupantes de alcances numa on line  dimensão de tempo sob comando de mãos transgressoras que se mostram manejadoras mais fortes do que estratégias de salvaguardas éticas.

A figura de uma pessoa com um dispositivo eletrônico tão arraigado a si como seu pertencimento anatômico tornou-se realidade como um microchip implantado subcutâneo para prover acesso seguro a portas pelo simples encostar da mão num sensor http://bigstory.ap.org/article/4fdcd5970f4f4871961b69eeff5a6585/cyborgs-work-employees-getting-implanted-microchips.

A conveniência acendeu um alarme da Bioética pelo potencial de violação à privacidade da pessoa pelo microchip que pode armazenar não somente dados pessoais como as movimentações no curso das atividades e ficam sujeitas ao conhecimento de indivíduos não autorizados. Vale dizer, a atualidade do sigilo ganhou um novo personagem de inquietude ética que pelas origens de Hipócrates faz lembrar o cavalo de Troia: o hacker.

As semelhanças da atividade deste revelador de segredos aplicadas na área do sigilo médico constituem um desafio à integração na beira do leito entre as facilidades irreversíveis das inovações eletrônicas para a qualidade do atendimento às necessidades de saúde do paciente e o cuidado clássico com a privacidade. Novas formas conciliadoras de pensar são desejáveis.

O que se observa é que o espaço está sendo rapidamente preenchido pelo novo hábito tecladista na palma da mão, o que urge um posicionamento normativo de autoridades, muito embora, entenda que os princípios éticos vigentes permitem fundamentar um uso racional, calcado no bom senso, adequado para a modernidade da informação não transgressora dos fundamentos do sigilo profissional. Todavia, enquanto não houver uma “palavra oficial” da Ética brasileira, a insegurança sobre a correção ética persistirá  gerando tensão na beira do leito.

 

 

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